Chefes da equipa de urgência do São Francisco Xavier ameaçam demitir-se. Administração admite interromper férias

Médicos contestam a organização proposta das equipas, que contempla apenas um assistente hospitalar, com funções de chefe de equipa, e um interno do 5.º ano. Clínicos e a administração estiveram reunidos, mas o encontro terminou sem acordo.

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Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Os chefes de equipa do serviço da urgência geral do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, que pertence ao Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, anunciaram ao conselho de administração que se demitem dos cargos de chefia se o planeamento da escala para o mês de Agosto não for alterado. Médicos e a administração estiveram reunidos, esta sexta-feira, durante duas horas, mas o encontro terminou sem acordo. A administração propôs a criação de um grupo de trabalho e admitiu interromper férias se a equiparação de internos do último ano a assistentes hospitalares não for aceite.

Numa carta enviada à administração, a que o PÚBLICO teve acesso, o grupo de médicos de medicina interna contesta a organização proposta das equipas, que contempla apenas um assistente hospitalar, com funções de chefe de equipa, e um interno do 5.º ano.

Na carta, o grupo diz que considera a composição das equipas “imensamente desadequada, não só perante a afluência diária de utentes ao SU [serviço de urgência], mas também pela necessidade mantida de repartição da equipa médica em dois circuitos (doentes com queixas respiratórias e não respiratórias)”. “A composição proposta tem, ainda, implicações directas e significativas na formação médica geral e especializada, que fica assim posta em causa”, alertam os subscritores.

“O grupo considera que com a constituição proposta no planeamento actual – e esperando que se mantenha ou até agrave (no período de Inverno que se segue) a afluência actual e a necessidade de dois circuitos com reanimação – não estarão garantidas a capacidade de assistência e cuidados às pessoas que recorrem ao SUG [serviço de urgência geral] do CHLO [Centro Hospitalar Lisboa Ocidental] nem a segurança destas e dos profissionais que as assistem”, afirmam.

“Nesse sentido, concretizando-se este planeamento e a constituição das equipas nele proposta, o grupo apresentará a sua demissão em bloco da função de chefia do SUG, a aplicar a partir do mês de Agosto”, concluem.

O PÚBLICO contactou o centro hospitalar, que remeteu explicações para um comunicado a enviar posteriormente, na sequência da reunião marcada para as 12h com os clínicos.

Situação antiga

Na missiva enviada ao conselho de administração, os médicos afirmam que a crise que vive no serviço da urgência geral “é antiga e tem-se vindo a agravar progressivamente” e que as condições de trabalho “se vêm precarizando” e “têm sido cada vez maiores”.

“Perante a situação durante as noites e os fins-de-semana de Agosto existe a hipótese de não haver urgências. As escalas estão muito abaixo das recomendações. Perante uma afluência diária de 20 a 250 pessoas que recorrem à urgência, um especialista e um interno é claramente insuficiente”, disse ao PÚBLICO Maria João Tiago, secretária regional de Lisboa e Vale do Tejo do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). No mínimo, a escala deveria ter dois médicos especialistas e dois internos.

“Já em Fevereiro deste ano, o sindicato alertou para o problema das escalas insuficientes, mas não obteve nenhuma resposta à missiva”, acrescentou a médica, lamentando a ausência de capacidade para fixar clínicos no SNS.

A médica adiantou que nesta reunião com o conselho de administração seriam entregues cerca de 25 pedidos de escusa de responsabilidade e que mais médicos se poderiam juntar na entrega destes pedidos. Em relação ao encontro, a “expectativa é que o conselho de administração corrija a injusta situação destes médicos” e avance com medidas para contratar mais profissionais.

“Não é pedindo mais horas extraordinárias que se resolve este problema. Só será resolvido quando rapidamente forem revistas as grelhas salariais. Com uma perda de cerca de 30% do poder de compra, com a inflação, um médico a fazer 40 horas semanais leva no final 1700 euros limpos por mês”, disse.

Reunião sem conclusões

A reunião entre os médicos e o conselho de administração durou cerca de duas horas e terminou, ao início da tarde, sem que fossem apresentadas soluções, revelou Maria João Tiago, que está a acompanhar todo o processo com os clínicos do São Francisco de Xavier. “A reunião terminou sem conclusões e com uma ameaça velada de cancelamento de férias. Os conselhos de administração sempre que quiserem poderão cancelar férias. E em vez de se tentarem resolver as coisas pela via correcta, resolve-se, como sempre, sob a pressão e esta é a ameaça velada aos colegas”, lamentou a secretária regional de Lisboa e Vale do Tejo do SIM.

“Na prática, o que é que isto vai mais uma vez fazer? Temos aqui um grupo de internos do quinto ano, a terminar [a especialidade]. Quando for o concurso, não irá escolher este hospital. É o que tem acontecido. No último concurso [para contratação de recém-especialistas], das sete vagas, apenas dois médicos ficaram. Já chegamos ao ponto de nem quererem escolher vagas para fazer a especialidade. É grave”, apontou.

Durante a tarde, em declarações às televisões, a presidente do conselho de administração do CHLO, Rita Perez, afirmou que estão a fazer tudo para que as urgências não encerrem e “nada disso provavelmente vai acontecer, a não ser que sejamos obrigados”. “Estão asseguradas as condições mínimas para funcionarem” e, mesmo não sendo as desejadas, “mantêm a segurança”.

Rita Perez explicou que quando aprovaram o plano de férias, em Março, foi com base no pressuposto que as vagas abertas para a contratação de novos especialistas de medicina interna iam ser preenchidas, sendo esse “número suficiente para não ter problemas no Verão”.

“Algumas vagas não foram ocupadas, porque os regimes de trabalho e das horas extraordinárias não são muito atractivos”, disse, referindo que actualmente há médicos que preferem fazer prestações de serviço por ser financeiramente mais vantajoso e deixar mais tempo livre. Das sete vagas abertas, quatro ficaram desertas.

Férias podem estar em causa

“Para não tomar decisões drásticas, que é interrupção de férias, o que fizemos foi uma equiparação dos internos de último ano com funções de assistente e isso colmatava as equipas”, disse a administradora. Se essa equiparação não for aceite, “só com assistentes hospitalares, terei de interromper férias”, admitiu, quando questionada com um possível encerramento das urgências durante Agosto face à falta de profissionais. A responsável salientou que além dos médicos de medicina interna, há internos e médicos de outras especialidades que integram as equipas da urgência.

Questionada sobre se os médicos irão demitir ou não dos cargos de chefia, afirmou que “não ficou claro, nem evidente se se vão demitir”. “Isto é um problema de atractividade do SNS. O que propus foi um grupo de trabalho, porque existe agora um mecanismo legislativo de forma a pagar horas extraordinárias com um valor mais elevado”, disse acrescentando que a “proposta foi bem recebida”. Adiantou igualmente que “mais de metade dos médicos” que esteve na reunião – foram 15 - “já tem capacidade para receber horas majoradas”.

“Que dizer que trabalham muito e não estou a dizer que não quem aderir ao plano só porque não querem”, afirmou Rita Perez, reconhecendo que a medicina interna foi especialmente penalizada com trabalho por causa da pandemia. A administradora considerou ser necessária uma revisão do regime de trabalho de determina a realização de 18 horas de trabalho de urgência, que “particularmente para medicina interna é muito penoso”.

Depois da reunião com a administração, o grupo de clínicos medicina interna reuniu-se para decidir o que fazer. “Vão avançar com as minutas de escusa de responsabilidade e mantêm a sua posição, mesmo perante a ameaça de cancelamento das férias e em defesa dos doentes, de avançar com a demissão dos cargos de chefia se nada for alterado”, disse Maria João Tiago.

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