Sem planos

O silêncio permite-me apurar a visão do que realmente importa.

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"Eu não sabia, mas afinal preciso de meios-termos para ser feliz" Maria Inês

Há dias que parecem ter vida própria sem piedade de nós. A nossa tristeza é lhes indiferente. A angústia cobre-nos e só um braço emerge para dizer: “ainda estou aqui”.

Os dias não são todos iguais, felizmente. A minha mãe cedo me ensinou a ter esperança no que vinha depois da angústia: “Amanhã tudo te vai parecer melhor.” Eu era adolescente, e, não menosprezando essas dores que não conheciam ainda espaço para se acomodar, percebo agora que a consciência agrava o peso dos dias. Talvez gostasse de voltar à adolescência, ainda que, na altura, a luz ao fundo do túnel me parecesse distante.

Hoje, o dia está turvo lá fora (há uma diferença entre o que a janela mostra e a cor com que o dia se veste dentro de nós), mas sinto uma espécie de calma silenciosa, aquela que não precisa de adornos para se manifestar. Meio sorriso desenhado. Uma fortuna inteira sem sinais de riqueza exterior.

Neste dia turvo, abri a janela e deixei o silêncio entrar. A gata dos vizinhos, sorrateiramente, esconde-se nos lugares mais espertos onde a sombra se deita com ela. Vou à janela e tenho novamente meio sorriso. A terra do quintal está seca e as flores há muito que murcharam. Ali ao lado, uma árvore deixa cair as folhas mais cedo como se o Outono viesse antes do tempo. O calor desidrata as cores que já foram da Primavera. Meio sorriso porque a outra metade não gosta do Verão.

Desde que me tornei adulta, deixei de apreciar estes meses de vai-e-vem. Gente que nunca está cá. Uma cidade que entregamos aos de fora. Um bronzeado que já não fica connosco.

O calor desorienta-me. Ponho o som da chuva para adormecer. Em noites de insónia, o camião do lixo passa e reconforta-me. Um som arrastado que me engana o desconforto.

Todos os dias vejo as temperaturas. Se sobem, o meu ânimo desce — nem meio sorriso tenho. A praia que ainda me faz sentido tem a frescura das manhãs ou o vento das tardes. Eu não sabia, mas afinal preciso de meios-termos para ser feliz.

Nunca como agora ouvi tantas vezes a frase “Um dia de cada vez”. Aquilo que a todos nos parecia um cliché repete-se na boca daqueles com que me cruzo. Há uma ideia de finitude que paira no ar. A nossa, a dos nossos, a do lugar que ocupamos. As notícias incompreensíveis sucedem-se. É isso: o mundo deu lugar ao incompreensível e ficamos à espera de mais uma e outra notícia triste — já as aguardamos, apáticos.

Foi a pandemia que nos melindrou, nos fez sentir pequenos, com medo de respirar, de darmos passos sobre os quais antes nem pensávamos. “Um dia de cada vez.” E um a seguir ao outro parece agora uma vitória. Quando os concluímos. Quando nos deitamos com uma sensação de que foi melhor do que se pensava. Quando arrumamos a angústia e ela não nos invade na hora de dormir. Quando o corpo cansado se desliga do mundo incompreensível. O som da chuva e o camião do lixo vão arrastar-me no sono possível.

Imersa nesse manto do incompreensível, tenho reforçado a minha gratidão por pequenos instantes. Eu sei que a palavra “gratidão” parece agora abrangida por essa coisa new age light com que nos iludimos. Temos receio de que as palavras caibam nessa categoria oca que não quer dizer rigorosamente nada. Mas a gratidão é o que me faz querer continuar.

Gratidão é juntar um prazer novo aos que já tinha ou voltar a um antigo que já nem me lembrava de valorizar. Gratidão é fazer os outros um bocadinho mais felizes no mundo incompreensível. Ainda estamos aqui. São muitos braços a acenar.

O dia está turvo e aqui na rua hoje os carros não passam. Um avião cruza agora o céu e ao quintal vieram os pássaros debicar folha e meia ressequida. O silêncio permite-me apurar a visão do que realmente importa. E o que importa é pouco, e temos a obrigação de o saber escolher.

Hoje, da janela turva, só queria dizer (sem medo das palavras ocas) que a vida está certa quando a vivemos um dia de cada vez.

Os planos podem ficar para depois.

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