Que moderno está o espaço público

As personagens são fictícias, mas os acontecimentos são reais. Quanto custaria ter isto tudo? Provavelmente pouco, mas nem o município nem a região reservaram verbas para tal coisa.

É um largo de freguesia igual, ou parecido, a tantos outros. Bem arranjado, jardins aprumados, arquitetura de espaço público cuidada. Naquele fim de tarde quente, Maria sai da consulta no centro de saúde, olhando para o relógio preocupada com o filho, com o adiantar da hora e a necessidade de fazer o jantar, e decide esperar pelo autocarro na paragem assinalada por um poste enferrujado, sem horários afixados, ali junto ao café.

Ao mesmo tempo, num auditório não muito longe do largo, e perante uma plateia entusiasmada, um responsável local, se calhar presidente da câmara, discorre sobre a importância da mobilidade urbana. Maria continua à espera. O tal responsável, que, pela pose, bem pode ser o edil, sobe o tom, para gáudio dos presentes, e exige que o governo lhe financie um Metro Bus nas freguesias e a renovação da linha do comboio no concelho. Na esplanada do café do largo, um grupo de homens refrescam-se com cervejas e entretêm-se a jogar às cartas. Um deles fixa a sua atenção em Maria, à espera do autocarro sob o sol quente de verão, sem sombra que lhe valha, e já com o suor a escorrer-lhe pelo rosto.

Nesse momento, um homem aproxima-se, lentamente, daquela espécie de paragem. António, reformado há alguns anos, a quem a idade tolhe os movimentos ao ponto de não poder conduzir, já apenas se pode valer do autocarro para se deslocar.

A figura proeminente local, essa, continua imparável. Alimentando-se dos aplausos dedicados, reclama agora por autocarros mais modernos. Maria limpa o suor, não pára de olhar para o relógio, sente as pernas cansadas, mas decide não ir para a esplanada esperar pelo autocarro. António contrai o corpo na tentativa de controlar a vontade que tem de ir à casa de banho. O autarca – ou será agora o governante que fora convidado para a conferência sobre mobilidade? – puxa do trunfo da tecnologia e anuncia o desenvolvimento de uma app, verdadeiramente inovadora, o último grito do digital. António sabe que o sanitário mais próximo é no café e obriga a consumo. Gastou os últimos trocos na drogaria. Onde está o multibanco?

A plateia está ao rubro e o orador segue, triunfante, para a emergência da smart city, com wifi gratuito em todo o território, de certeza dentro dos autocarros. Nas paragens, não. Maria atende o telefone da creche, avisam-na que o filho está sozinho à espera. O calor aperta, se calhar devia ter aceitado a boleia de carro que a vizinha ofereceu e que recusou por cerimónia.

No auditório, ouve-se agora a exigência de ainda maior redução no preço dos passes de transporte público. Aliás, deviam ser gratuitos. Maria tem passe, António também, mas não tem trocos. Decide arriscar e vai coxeando até ao multibanco mais próximo. Não sabe que o autocarro em breve chegará. A mobilidade do concelho é elogiada: há viaturas modernas, passes baratos, apps de vanguarda. A plateia está em transe. António levanta dinheiro, mas perde o autocarro. Maria, depois de 50 minutos de espera, entra, mas já não tem bateria no telemóvel. Os discursos chegam ao fim, a ovação inflama os egos e todos seguem entre cumprimentos esfuziantes, sorrisos e abraços, promessas de avançarmos “com isso” rapidamente, o edil, os vereadores e o governante entram nas respetivas viaturas oficiais e rumam ao próximo conclave.

António terá de esperar mais uma hora; tem tempo para se compor nas instalações do café em troca de uma água fresca. Maria chega cansada à creche e cansada segue com o filho ao colo. António desiste e pede a um filho que o vá buscar.

Naquele largo de freguesia, numa periferia tranquila e calma, que facilmente reconhecemos de algures, não há um interface de transportes digno. Não há painel eletrónico, nem cobertura para o sol ou chuva que proteja quem espera. Não há máquina automática de bilhetes. O único multibanco é no edifício da junta. As casas de banho são escassas ou nenhumas e só existem no comércio local. Os horários não estão afixados. O wifi desaparece quando os autocarros arrancam. Quanto custaria ter isto tudo? Provavelmente pouco, mas nem o município nem a região reservaram verbas para tal coisa.

Nota final: As personagens são fictícias, mas os acontecimentos são reais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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