O degelo está a mostrar como se vivia nas montanhas da Noruega há mais de seis mil anos

Momentos congelados no tempo contêm informação sobre o que vestiam ou o que caçavam os homens que percorreram o território que hoje derrete a uma velocidade preocupante. É a arqueologia a tirar partido do aquecimento global e a tentar compreender como lidaram os nossos antepassados com as alterações climáticas.

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A flecha com seis mil anos encontrada na cordilheira Jotunheimen Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia

Os termómetros na terra têm vindo a subir e assim deverão continuar se não alterarmos hábitos de consumo e comportamentos, alertam há anos muitos cientistas preocupados com os efeitos duradouros e, por vezes, devastadores do aquecimento global.

Entre as muitas consequências do fenómeno está o degelo, que em países como a Noruega tem vindo a revelar aos arqueólogos que trabalham nas montanhas verdadeiras cápsulas do tempo sob a forma de glaciares e manchas de neve que, ao derreterem, deixam a descoberto objectos e vestígios de fauna e flora que mostram como ali se vivia há milhares de anos.

Num relatório recentemente publicado, uma equipa de investigação do museu da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia faz uma súmula do que a chamada arqueologia glaciar tem vindo a revelar, garantindo que a informação reunida e tratada até aqui não é útil, apenas, para conhecer o passado, mas também para preparar o futuro.

De acordo com os números oficiais da entidade norueguesa encarregada de monitorizar os recursos hídricos e energéticos, 364 quilómetros quadrados de glaciares e manchas de neve derreteram desde 2006.

A estes dados junta-se uma pesquisa baseada em imagens de satélite já com dois anos que, segundo a arqueóloga Birgitte Skar, indica que “mais de 40% das dez manchas de gelo seleccionadas [para monitorização], com descobertas conhecidas, derreteram”, o que se traduz numa “ameaça significativa” à preservação dos achados arqueológicos e à manutenção do próprio gelo como “arquivo climático”, explicou ao Norwegian SciTech News, site em que a universidade tecnológica partilha com o grande público os resultados do trabalho das suas equipas.

Entre as descobertas mais antigas feitas pelos arqueólogos em virtude do degelo estão uma flecha com mais de seis mil anos, um tordo de asa vermelha que morreu há quatro mil e cujos órgãos internos estão ainda intactos, e um sapato feito em pele, bem conservado, com 28 cm de comprimento, o que corresponde hoje a um tamanho 36 ou 37.

“Foram encontrados objectos, restos de animais e vestígios de actividades humanas que nem sabíamos que existiam”, reconhece Birgitte Skar, uma das responsáveis pelo relatório do museu universitário. “As descobertas incluem desde arreios e roupas para cavalos até flechas com pontas feitas de conchas, hastes de madeira e penas. Não passa um ano sem que haja descobertas surpreendentes que mudam os limites da nossa compreensão.”

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Tordo de asa vermelha que morreu há quatro mil anos e cujos órgãos internos estão ainda intactos Jørgen Rosvold/Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia

Lembram os especialistas citados pelo site de divulgação que a acidez natural do solo da Noruega, implacável com qualquer matéria orgânica, dificilmente teria permitido que este exemplar do calçado que se usava na região há três mil anos chegasse à actualidade em bom estado, mantendo absolutamente perceptíveis alguns dos seus detalhes.

Boa parte dos achados arqueológicos, que incluem ainda vários vestígios de fauna, nalguns casos animais mumificados, até, resultaram de trabalhos de prospecção e escavação na cordilheira Jotunheimen, nos Alpes Escandinavos, o que sugere que esta zona, onde se encontram as montanhas mais altas da Noruega, foi há milhares de anos um território de caça, mesmo sob temperaturas muito inferiores às que hoje se fazem sentir.

O facto de terem sido preservados em gelo durante tanto tempo fez com que os restos animais e os artefactos feitos pelo homem mantivessem intactas muitas das suas características. Os ossos de rena ali localizados e datados – têm 4200 anos , por exemplo, têm ainda medula, o que permitirá aos cientistas recolher informação genética preciosa que poderá levá-los a identificar as mutações que sofreram para melhor resistirem às alterações climáticas e à acção do próprio homem, explica Jørgen Rosvold, outro dos cientistas envolvidos no relatório.

“Costumávamos pensar no gelo como desolado, sem vida, e, por isso, pouco importante. Isso está a mudar, mas é urgente [continuar a trabalhar]. Grandes quantidades de material único estão a derreter e a desaparecer para sempre”, acrescenta Rosvold.

Também para a arqueóloga Birgitte Skar, é indispensável continuar a recolher dados nesta e noutras zonas geladas do país sob intensa pressão devido ao aquecimento global para, assim, se perceber melhor como o clima evoluiu nos últimos 7500 anos.

“Estamos a tentar perceber se o gelo em certos lugares terá sobrevivido ao período quente após a última era glacial, o que significaria que a camada inferior do gelo poderia ser remanescente da camada de gelo desse período. Essa possibilidade oferece oportunidades sem precedentes para rastrear a história e a actividade climática nessas áreas de caça, recuando ainda mais no tempo”, conclui Skar.

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