Qual a importância do acordo de retoma da exportação de cereais? Porque é que foi assinado agora?

A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e a ONU assinaram o acordo que vai desbloquear os portos de Kiev. Qual a importância e quem ganha com a assinatura deste tratado? Porquê agora? Haverá consequências para a União Europeia?

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A investigador Carla Guapo da Costa prevê uma “forte descida dos preços dos alimentos” com a assinatura do acordo Reuters/MURAT CETINMUHURDAR/PPO

Esta sexta-feira, 22 de Julho, em Istambul, na Turquia, foi assinado o acordo sobre os cereais ucranianos. Este pacto vai desbloquear os portos de Kiev e permitir retomar as exportações de cereais a partir do mar Negro. O acordo foi assinado por representantes da Turquia, Rússia, Ucrânia e das Nações Unidas. Foi António Guterres, secretário-geral da ONU, quem abriu a cerimónia: “Hoje há um farol no mar Negro. O farol da esperança. O farol da possibilidade. O farol de alívio num mundo que precisa dele mais do que nunca.”

Carla Guapo da Costa, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e investigadora na área da geoeconomia, explica a importância e o impacto da assinatura deste tratado e quais os objectivos dos russos ao bloquear os portos ucranianos.

Qual a importância da assinatura deste acordo?

“É muito significativa”, principalmente porque se prevê uma “forte descida dos preços dos alimentos”, defende a investigadora.

Esta descida dos preços irá amenizar “os efeitos da crise alimentar que se está a abater sobre os países mais frágeis e a pôr em causa a segurança alimentar de muitos outros”.

Em conjunto, a Rússia e a Ucrânia representam cerca de 30% das exportações de cereais a nível mundial. Além disso, Moscovo tem uma elevada importância na produção de fertilizantes utilizados na produção alimentar, relembra Carla Guapo da Costa.

Quem ganha com a assinatura?

De um ponto de vista geopolítico, “o grande vencedor é claramente Erdogan, que reforça o seu capital de negociador junto da comunidade internacional”. Segundo a investigadora, um dos trunfos da Turquia é “a sua posição geográfica, que lhe permite — entre outras coisas — accionar a Convenção de Montreux”. Tal convenção, assinada em 1936, permite que a Turquia controle o acesso entre o mar Negro e o Mediterrâneo, controlando assim os estreitos dos Dardanelos e do Bósforo.

Sendo a Turquia um membro da NATO, acaba por ter “uma vantagem muito grande junto dos países ocidentais”, ao mesmo tempo que “mantém relações privilegiadas com a Rússia”. Deste modo, “a Turquia quer promover o seu efeito de influência, o seu papel de negociador, de equilibrador entre os dois lados em conflito, tirando partido de uma posição de maior força junto da União Europeia, com quem tem uma relação de amor-ódio há décadas”.

Também a Rússia sai a ganhar, já que, com este acordo, serão levantadas sanções que impediam, indirectamente, o país de exportar cereais e outros produtos. Carla Guapo da Costa clarifica que Moscovo não estava proibido de exportar produtos alimentares, “mas enfrentava bloqueios e sanções significativas a nível do transporte, dos seguros e das garantias bancárias, que sobrecarregavam as operações”.

O que pode ter motivado Putin a assinar agora?

Além do alívio que a Rússia vai obter com o levantamento de sanções e bloqueios, os gastos com a guerra são grandes e geram descontentamento na população, levando a um “crescendo de agitação social que não agrada ao poder político”, explica Carla Guapo da Costa.

Até esta sexta-feira, a Rússia dizia estar disposta a terminar o bloqueio aos portos ucranianos. No entanto, atribuía as culpas à Ucrânia, dizendo que o país tinha minado o mar, impedindo a passagem dos barcos.

Para a investigadora, aquilo que Moscovo tentou fazer foi “limpar a sua imagem, arranjando argumentos que não faziam sentido. As águas estão minadas, efectivamente, mas era a Rússia quem impedia a saída dos cereais porque haveria alternativas.”

A assinatura do acordo pode trazer consequências para a UE?

Para Carla Guapo da Costa, a ideia de a União Europeia ser atingida negativamente é pouco provável.

Embora alguns países possam ter tido ganhos iniciais, aquando da substituição da produção russa e ucraniana, os países da UE “não conseguem produzir o suficiente para atenuar os custos dos preços elevados”, sejam eles cereais, fertilizantes ou a nível energético, explica. Além disso, a UE “também está a sofrer com a subida das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu”.

Os países-membros da União Europeia poderão ter ganhos significativos com a assinatura deste acordo, afirma a investigadora. Isto porque o mesmo poderá levar a que vários países exportadores flexibilizem “as restrições do mercado interno, repondo as exportações que faziam para o mercado global” anteriormente.

Qual o objectivo geopolítico da Rússia ao bloquear os portos?

O principal objectivo destacado pela investigadora Carla Guapo da Costa é “a construção e o desenvolvimento de um bloco regional chamado União Económica da Eurásia”.

O objectivo começou por ser “uma espécie de alternativa à UE. Pretende-se criar uma zona de mercado interno, de trocas entre países, e, futuramente, até poderiam evoluir para um sistema financeiro e uma moeda própria.” No fundo, a Rússia poderia diminuir a sua dependência do Ocidente.

Moscovo “acarinha este projecto” e tenta construir esta união desde 2000. No entanto, após as eleições de 2004, a Ucrânia tornou-se mais “pró-ocidental”, o que afectou o plano russo.

“A Ucrânia era importante para a Rússia porque era um país com activos muito valiosos. Desde a questão dos cereais, passando pelo minério de ferro e pelas indústrias (graças ao investimento estrangeiro que conseguiu capturar nos últimos anos) na área do aeroespacial e da construção naval.”

Para Carla Guapo da Costa, até esta sexta-feira, Moscovo usou a fome como arma de guerra. “Estamos, desde o início deste conflito, num contexto geoeconómico”, o que significa que “os países usam instrumentos de base económica para atingir os objectivos”, afirma. Neste caso, a arma russa foram os cereais e, consequentemente, a fome.

Até ao momento, que impactos teve o bloqueio?

O principal impacto tem sido económico, registando-se um aumento dos preços.

“As economias não estão isoladas. São profundamente interdependentes e isto faz com que o impacto das sanções acabe por se traduzir em todos os países. Há um impacto global directo e indirecto”, afirma Carla Guapo da Costa.

O aumento directo dos preços tem sido notório nos combustíveis, energia, cereais. Já o aumento dos custos indirectos fez-se através da “incorporação, por exemplo, dos cereais, em cadeias de valor”, das quais os países dependem para assegurar a alimentação.

Os países mais afectados pelo bloqueio dos cereais nos portos ucranianos foram os países africanos.

Este tipo de estratégias geopolíticas é frequente?

Sim. Segundo Carla Guapo da Costa, “os países recorrem muito a estas técnicas geopolíticas, quer para se defenderem de outros, quer para projectarem o seu poder”.

Um desses exemplos foi o Irão, em 2019, que ameaçou fechar o estreito de Ormuz em resposta a uma decisão dos EUA de pôr fim às isenções sobre as sanções impostas às empresas que exportavam petróleo iraniano.

“Isto não é nada de novo”, afirma a investigadora, que defende que a acção de Putin não era totalmente inesperada.

Portugal poderia ter-se protegido do impacto do bloqueio?

“Acho isso algo muito difícil”, diz. Portugal optou por um “modelo de integração [económica] muito aberto, que se apoia na interligação entre as economias”, explica Carla Guapo da Costa. O país é, por isso, muito dependente das importações. Além disso, Portugal não se especializou “em sectores que criem valor acrescentado”.

“Temos uma parte substancial da nossa economia totalmente dependente de sectores de actividade que variam muito da oferta e da procura”, como o turismo. A consequência? “Sectores muito afectados pelas perturbações que se registam a nível global”, afirma.

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