Um livro sobre a água e um planeta que corre o risco de ficar sem ela
E no Princípio Era a Água nasce de um convite feito pelo Jornal do Centro a três fotógrafos, incluindo Adriano Miranda. O fotojornalista do PÚBLICO fala de uma obra política, que não é “um álbum de fotografias bonitinhas”.
Se olharmos para a fotografia algo desatentamente, podemos pensar que estamos a contemplar um prato de alta gastronomia, daqueles que são preparados nos restaurantes mais caros e que ostentam mais estrelas Michelin. Mas este não é um prato como os outros. Trata-se de um robalo grelhado “com crosta de plástico em cama de batatas salteadas e tampas de iogurte”.
Quem “inventou” e fotografou este prato foi Igor Ferreira. A imagem é uma de várias do projecto “Dialéctica ambiental”, em que o fotojornalista coloca em cima da mesa pratos que, apesar de parecerem deliciosos e altamente refinados, contêm plástico, compostos químicos e outras coisas que vão parar ao mar (vai um “waffle recheado em essência de fármacos”?).
“Dialéctica ambiental” é um dos capítulos de E no Princípio Era a Água, livro em que três fotógrafos (Adriano Miranda, fotojornalista do PÚBLICO, Igor Ferreira e Nuno André Ferreira) reflectem, cada um à sua maneira, sobre esse bem precioso e os desafios a ele associados. A obra, que também inclui pequenos textos introdutórios de Patrícia Portela (escritora e artista transdisciplinar), Petteri Taalas (secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial das Nações Unidas) e Sandra Rodrigues (directora de informação do Jornal do Centro), sai esta sexta-feira, estando marcada uma cerimónia de lançamento para as 18h30 na Casa do Miradouro, em Viseu.
E no Princípio Era a Água começou com um desafio lançado pelo Jornal do Centro, fundado em 2002, aos três fotojornalistas envolvidos no projecto. A publicação digital viseense queria fazer algo de especial para celebrar o seu 20.º aniversário e sugeriu a Adriano, Igor e Nuno André que, juntos, pensassem num tema que estivessem interessados em explorar, num objecto ao mesmo tempo documental e artístico. “Lembrámo-nos da água porque o Dia Mundial da Água [22 de Março] coincide com o aniversário do jornal”, explica Adriano Miranda, que no seu projecto (“Terra morta”) explora as questões da água através da lente das alterações climáticas.
O fotojornalista do PÚBLICO lembra a ideia (sem fundamento) de que a bomba de neutrões poderia, em cenários de guerra, ser usada para matar pessoas sem destruir edifícios. “O que vai acontecer ao planeta é isso: a água vai acabar e vamos morrer todos, mas vai ficar cá alguma coisa. O mundo vai ficar em arquivo. E depois há-de aparecer algo ou alguém, um extraterrestre qualquer, que vai descobrir o que andámos para aqui a fazer.”
Uma carga política muito forte
Interessando em trabalhar essa ideia de arquivo, Adriano Miranda revisitou o seu acervo pessoal. Ao mesmo tempo, fotografou animais empalhados, explorando o espólio de duas instituições: o Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto e a Escola Secundária de Sá de Miranda, em Braga.
No livro, há vários “casamentos”. Cada imagem mais antiga, pertencente ao arquivo do fotojornalista, tem na página seguinte um animal empalhado que a completa, ou que com ela estabelece um diálogo, tanto poético como político. Se numa página surge a fotografia de um incêndio florestal, na página seguinte surgem várias aves empalhadas nos galhos de uma árvore frágil e despida. Se numa página surge uma fotografia a exibir troncos cortados, na página seguinte surge um mocho que acabou de perder a sua casa.
“Terra morta” toca em várias questões, como o abate de animais, a desflorestação, a fome, a poluição do ar e até mesmo o trabalho infantil. Adriano Miranda usa várias vezes a palavra “política” para falar do seu próprio projecto. E também para falar do projecto de Igor Ferreira. “O trabalho do Igor choca muito”, comenta o fotojornalista, dizendo que quem o vir pensará naquelas imagens da próxima vez que for a um restaurante. “Vai olhar para o prato e pensar: ‘Será que estou a comer metais pesados?’”
Mais “leve” será o trabalho de Nuno André Ferreira, “Virar a página”. O fotógrafo percorreu o país para, conforme explica no livro, “mostrar que a água é o nosso estado de espírito”. Fotografou, por exemplo, agricultores locais, pescadores de pequena escala, remadores a desafiar o mar mesmo num dia de nevoeiro espesso, animais de gado a matar a sede num tanque, banhistas a aproveitar um dia de repouso na praia e pessoas a dormir com o som das marés mesmo ao lado. Fotografou “aquilo que a água nos dá”, resume Adriano Miranda. “Dá-nos trabalho, dá-nos pesca, dá-nos indústria, paisagem, lazer, terapia... Enfim, dá-nos muita coisa. São imagens mais leves. Não é por acaso que são as que fecham o livro”, repara, falando de um trabalho que permite respirar depois da violência de “Dialéctica ambiental” e “Terra morta”.
“Não quisemos retratar a água de uma maneira óbvia ou fazer um álbum de fotografias bonitinhas. O planeta, do jeito que está neste momento, não está nada bonito”, diz Adriano Miranda, ressaltando que E no Princípio Era a Água permite reflectir sobre a forma como estamos a abusar de um recurso vital.
“O livro diz muita coisa sem ser panfletário. Não aponta dedos, não dá ordens, não tem um manifesto. Simplesmente cuida do mundo ao olhar para ele com carinho”, diz ao PÚBLICO Patrícia Portela, que foi convidada por Sandra Rodrigues a acrescentar as suas palavras à obra.
Em termos visuais, E no Princípio Era a Água foi concretizado pelo estúdio de comunicação e design Gráficos Associados. Existem 1000 exemplares do livro, sendo que cada um custa 30 euros.