A insatisfação

As pessoas entraram no amor low cost e dispensam a bagagem.

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"A escolha anda de braço dado com a insatisfação" Maria Inês

“Ninguém está bem com o que bem que tem.” Fartei-me de ouvir isto da boca da minha mãe, que já o ouvira da boca da minha avó. O António Variações deu voz a esta insatisfação que, sem o sabermos, queremos manter muito perto de nós. Eu quero uma dose de insatisfação para me fazer ir espreitar mais longe, procurar mais além, ir aonde não fui, encontrar os sítios onde nunca estive. Sem a insatisfação, a casa chegava-nos.

A casa chega-me muitas vezes. Fico inerte a pensar que ainda vou a tempo de ser melhor e de viver outras vidas. O tempo em que paramos agita-se no pensamento. Eu apregoo aos sete ventos a minha vontade de mudança. Não preciso de esperar pelas decisões de fim de ano.

Quando as pessoas com quem vivemos dizem que somos chatos ou demasiado exigentes porque questionamos, comparamos ou lhes beliscamos o ego, isso mais não é do que a nossa insatisfação geminada com a da pessoa com quem escolhemos passar parte do nosso tempo. Calha essa pessoa ser a que vai connosco de férias e o avião ter um percalço, e, facilmente, percebemos a importância da nossa escolha. As pessoas entraram no amor low cost e dispensam a bagagem. Rejeitam a complexidade, as alíneas do contrato fictício. Querem que a relação tenha uma espécie de código-chave que o telemóvel leia. Eu, eventualmente, serei a voz do fundo da sala que grita – quero tocar na ementa.

A escolha anda de braço dado com a insatisfação. Ainda que o mundo esteja dividido entre os que passam metade da refeição a fazer perguntas, porque no prato vazio está a sua indecisão, e os que prontamente limpam a voz para pedir o prato sem angústias, ainda que o mundo seja uma pergunta ou um aparente ponto de interrogação, eu gosto da hipótese da escolha. Prefiro é não estar com as pessoas que vão passar o jantar de prato vazio. Prefiro gente que é um prato cheio. E nisso voltamos à insatisfação. Gente que tinha tudo para ser feliz com casa e piscina e trocou essa rotina por uma casa sem ar condicionado. Gente que disse adeus ao iate e passou a dar cinco euros para ir para uma praia com menos pessoas. Gente que tendo um vestido de noite o troca por uma farpela que melhor veste o dia.

Ser hesitante não é o mesmo que ser insatisfeito. Os hesitantes são os que temem os estremeções da vida ou o tártaro que vem cru. Crua é a vida – pensam eles. E vão no empadão que a avó já fazia. Os insatisfeitos são os que pedem o tártaro, provam do empadão, pedem só um chisquinho do arroz de polvo e no fim, não satisfeitos, vão de colher de prato em prato. O insatisfeito dirá que talvez volte àquele lugar, mas tem de experimentar mais coisas, sem código-chave.

A chave para não deixarmos que a insatisfação tome conta de nós é alimentá-la sempre com mais uma pergunta. Um safanão que a vida nos dá e que parecia ser apenas mais um terrível revés. As pessoas insatisfeitas podem ser insuportáveis. E há quem se apaixone por elas. E sabem? As pessoas insatisfeitas andam tão intrinsecamente saciadas com as próprias perguntas que ainda não viram respondidas, que se podem estar a borrifar para quem não as compreende.

Compreendam: as pessoas insatisfeitas não querem dentes brancos a sorrir numa moldura composta. Querem estragar a harmonia imposta. Querem esbarrondar a suposta felicidade alheia – mesmo que as pessoas sejam felizes.

Quando a pessoa com quem os insatisfeitos vivem diz que eles são instáveis e que nunca estão bem com o bem que têm, talvez seja altura de questionar se aquele “bem” é mesmo o melhor.

Substituam no vosso açucareiro o que lá está por insatisfação. Abram a tampa e tirem todos os dias uma pergunta e uma dúvida. Nada de hesitações, que isso é para os trémulos de convicções. Vão sem medo enfrentar as perguntas que o silêncio vos devolve. E há tanto por responder.

Eu, insatisfeita me confesso.

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