O resto das nossas vidas

Pela primeira vez, enfrentamos no planeta um calor tão extremo, tão alargado e tão devastador. Agora vi a arder a serra onde cresci, a serra do Louro, em Palmela.

Este não é o primeiro dia. Nem o segundo. Nem o terceiro. Nem o décimo. Mas pode ser o prelúdio para o resto das nossas vidas. Não é o primeiro dia em que Portugal arde. Não é o primeiro dia em que ligamos a televisão e os incêndios em dezenas de localidades diferentes enchem o ecrã, com as línguas de fogo implacáveis a consumirem terras e casas. Não é o primeiro dia em que assistimos a centenas de bombeiros mobilizados e prontos para lutar, a populações num pranto e aos constantes alertas vermelhos, que nos põem o coração nas mãos. Este não é o primeiro dia em que ficamos com raiva ao observar, mais uma vez, os fogos a engolirem um território nacional deixado ao abandono pelo Estado e nas mãos dos poderosos donos do “eucaliptugal”, senhores da indústria da celulose.

Mas esta é certamente a primeira vez que enfrentamos, a nível global, um calor tão extremo, tão alargado e tão devastador. Há uma vaga de calor a correr Portugal, a queimar Espanha e a deixar marcas de estragos em França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, entre outros. As temperaturas recorde do continente europeu estão muito perto de serem batidas, os incêndios deflagram em todo o lado, e as populações têm de se manter dentro de casa, desta vez não por uma doença, mas sim por um dos mais implacáveis sintomas da crise climática provocada pelo sistema capitalista: o calor extremo.

Recentemente, o primeiro-ministro António Costa afirmou que os incêndios “só ocorrem — só ocorrem — [...] se uma mão humana, voluntariamente ou por distração, o tiver provocado”. Analisando os dados inequívocos da ciência climática que indicam o aumento flagrante ao longo dos anos da temperatura média anual provocada pela emissão de gases com efeito de estufa para a atmosfera, é fácil concluir que, enquanto a nossa casa está a arder, os líderes políticos viram-se de costas. Adicionando a estes dados o facto de que, desde os trágicos acontecimentos de 2017, o território português está menos preparado para ter resiliência face aos fogos, com mais eucaliptos e mais poder dado aos donos da indústria da celulose – como Tiago Oliveira, quadro da The Navigator Company e convidado para liderar o mecanismo público de gestão de fogos AGIF – tudo se compõe: os líderes políticos não só se viram de costas, como nos atiram para o fogo. E fecham a porta da casa.

O dia de hoje, e talvez os que virão, podem ser um prelúdio para o resto das nossas vidas, marcadas pela maior crise que a humanidade enfrentou até hoje: o colapso climático. Podem, mas não têm de o ser. Podemos escolher resignar-nos ao fogo, ou podemos escolher gritar alto e bom som que não aguentamos nem mais uma vez ver Portugal em chamas. Há que responsabilizar quem para aqui é chamado a prestar contas. Por um lado, o Estado: não só continua a não ter um plano sério para cortar emissões e prossegue tranquilamente os investimentos em combustíveis fósseis, como deveria ter aprendido a lição de 2017 e ter dotado o território e as florestas com mais biodiversidade, mais meios de proteção, e mais construção de resiliência aos fogos nas populações. Por outro lado, os donos da floresta deste país, senhores do papel e cães de guarda do eucaliptal: a indústria das celuloses.

Agora vi a arder a serra onde cresci, a serra do Louro, em Palmela. Que este seja o primeiro dia do resto das nossas vidas, o dia em que batemos o pé.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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