Primeiro as pessoas, depois o lugar: como a vizinhança se organizou em resposta à pandemia

A mobilização cidadã foi importante para reagir de imediato às necessidades sociais. Casos de Aveiro e Barreiro mostram que a acção comunitária não ficou por aí.

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Pandemia fez nascer centenas de redes comunitárias de apoio Miguel Manso

A obrigatoriedade do confinamento trouxe consigo a urgência de responder a uma panóplia de questões sociais. Com a chegada da pandemia ao país, em Março de 2020, nasceram centenas de grupos de cidadãos para organizar apoio à vizinhança, dando uma resposta mais ágil e imediata que a pesada máquina da administração pública. Com a passagem do período mais crítico, estes movimentos informais passaram a preocupar-se mais com os problemas do lugar que os rodeia.

A reflexão é feita pelos investigadores José Carlos Mota, João Seixas, Alexandra Ataíde e Carolina Cardoso no capítulo Evolução das redes locais de solidariedade em Portugal, publicado em Maio deste ano, no livro El apoyo mútuo en tiempos de crisis. A edição a cargo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais resulta de uma recolha de textos académicos sobre solidariedade cidadã durante a pandemia em vários países de língua portuguesa e espanhola. O caso português debruça-se sobre os exemplos de Aveiro e do Barreiro, duas de 234 redes de apoio mapeadas.

Os investigadores concluíram que, “num primeiro momento”, estas redes visaram “agir sobre os problemas das comunidades e só após o período de emergência sobressai a postura de construção colectiva e acção táctica”. Chegando a esse ponto, já não era “sobre pessoas, mas sobre os lugares”, lê-se no texto.

“Olhando para as redes que foram activadas, há uma participação dos cidadãos muito expressiva”, analisa a investigadora da Universidade de Aveiro (UA), Alexandra Ataíde, que esteve envolvida na organização do movimento de vizinhança local. “Se a compararmos à acção do poder local, há um avanço mais rápido da comunidade”, diz o membro fundador do grupo Vizinhos de Aveiro, em declarações ao PÚBLICO. Esta é parte da explicação para criação desta resposta.

Esse avanço preocupou-se sobretudo com “grupos de risco, pessoas vulneráveis, idosos e famílias” que se viram fechadas em casa com as crianças, nem sempre com os meios para continuar a acompanhar aulas à distância. Tal como noutras redes do género, o apoio traduziu-se na compra de medicamentos, de mercearia, mas também no combate ao isolamento emocional, refere.

Aproveitar potencial colaborativo

A arquitecta e investigadora no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa, Carolina Cardoso, conta ao PÚBLICO que o grupo Vizinhos do Barreiro teve um nascimento paralelo ao congénere aveirense, depois de conversar com o professor da UA, José Carlos Mota. O lançamento também passou pela criação de um grupo do Facebook para identificar necessidades locais, mapear pessoas vulneráveis e criar uma rede de apoio. Acabaram por servir como uma plataforma que ligava a disponibilidade de quem queria ajudar à necessidade de bens ou desempenho de tarefas.

A activação destas redes durante os confinamentos, reflecte Alexandra Ataíde, mostra o “enorme potencial social e colaborativo que não está a ser aproveitado”. E prossegue: “Houve caminhos que se abriram, redes de solidariedade, iniciativas cívicas, de governação partilhada, que não podemos perder de vista”. Insiste que a nossa democracia “precisa deste capital social” para construir “respostas que são mais eficazes em contexto de crise”.

Entretanto, os grupos que nasceram em Aveiro e no Barreiro evoluíram para outra coisa. Na margem Sul do rio Tejo, o programa Bairros Saudáveis deu o empurrão necessário para a criação do Laboratório de Inovação Comunitária (LABIC) do Barreiro Velho, mais concentrado em promover a participação cidadã na reflexão sobre o espaço público.

“O Vizinhos do Barreiro surgiu como uma plataforma de conexão. O LABIC é um laboratório de inovação cidadã e surgiu pós-covid com a intenção de pensar o centro histórico”, resume Carolina Cardoso. A ideia era mobilizar a população local para os problemas comuns de uma zona “muito estigmatizada e abandonada há muito tempo”.

Foi desenhado um plano de actividades mais activo entre o final de 2021 e o início de 2022 que incluiu conversas, cinema, exposições e um festival para celebrar a rua. “É preciso entender que as pessoas têm o poder de co-construir a cidade”, defende a arquitecta, acrescentado que, “quando o colectivo se mobiliza, as coisas acontecem mais rapidamente”.

Também Aveiro teve a sua continuidade, através do Cidadania Lab, um projecto que foi um dos vencedores do Orçamento Participativo do município em 2020 e que chegou a arrancar, com vários encontros participativos, mas perdeu tracção com a “resposta da autarquia que começou a tardar”, refere Alexandra Ataíde.

“Em ambos os casos”, escrevem os investigadores, “a relação com os poderes públicos mantém-se muito reduzida, resultado de desconfianças mútuas e de uma longa cultura de liderança local que ainda toma os movimentos com considerável sobranceria”. Ainda assim, no caso de Aveiro, por ser um projecto apoiada pelo município, “emerge alguma possibilidade da experimentação realizada poder ter eco nas práticas participativas autárquicas”.

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