“Estás com um ar cansado”

Fica o apelo: se alguém está mais gorda, mais velha, mais cansada, mais maltrapilha, aos vossos olhos, tentem controlar a vontade de dizê-lo. Ou, se for tão incontrolável como aparenta, que digam nas costas.

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Abbie Bernet/Unsplash

“Estás com um ar cansado” disseram-me há pouco. O que se deve fazer quando nos dizem isto? Talvez escrever uma crónica sobre o assunto não seja o mais sensato, mas é o que estou a fazer, dado que a única acção que consegui efectuar quando fui aturdida por este comunicado foi curvar-me em submissão e dizer baixinho: “Pois, estou um pouco cansada.” Não, eu não gritei, como desejei ter feito segundos depois, enquanto caminhava e deixava a raiva e amargura inflamarem o diálogo interior: “Eu estou cansada, sim, estou exausta, não durmo uma noite seguida há quatro anos. Tenho em mim todo o sono do mundo!” Eu não subi para um banquinho e dei uma palestra para a esplanada inteira acerca da sociedade patriarcal e do peso da maternidade na vida da mulher. Eu não gritei: “As mulheres estão cansadas!” ou algo que fizesse o interlocutor sentir-se mal, como: “Você não sabe nada da minha vida.” Não, eu também não dei uma resposta cínica do estilo: “Estou cansada, sim, estou cansada de pessoas como você.” Eu também não lhe respondi em tom condescendente que quando não se tem nada de construtivo para se dizer a alguém o melhor é não dizer nada.

Eu ouvi em silêncio e senti a dor que estas palavras arremessadas na nossa direcção podem surtir. Porque não se trata de: “Tens alface nos dentes”, humilhante vindo de um semi desconhecido, mas útil e facilmente removível; mas também de nada de muito grave. É o tipo de coisa que nos abala a auto-estima num momento em que estávamos distraídos da nossa condição. Todos sabemos que “estás com um ar cansado” é sinónimo de: “Estás medonha, pavorosa, hedionda”. Pelo menos para quem ouve.

A única forma de a frase “estás com um ar cansado” ser bem-vinda é se for seguida de: “Deixa as crianças comigo e toma um voucher para uma massagem.”

Gostava de perceber o que leva alguém a dar este parecer não solicitado. A que propósito quererão informar-nos disto? Em princípio quem ouve está a par, já tem de lidar com o cansaço no seu próprio corpo. Quem o diz, apenas faz o favor de o vincar: “Estás a ver esse estado de exaustão que te derruba e te faz ter vontade de cair redonda e largar tudo? Sim, isso que estás a sentir, que está aí dentro a corroer-te as vísceras? Toda a gente vê! E não é agradável.” Normalmente uma pessoa está cansada, pasme-se, precisamente por não conseguir descansar. Não dá para agradecer a amabilidade do reparo e deitarmo-nos no colo dessa pessoa.

Proponho fazer uma petição para que se pare de proferir este tipo de comentários na cara. Se for para dizer mal, que digam nas costas. Fica o apelo: se alguém está mais gorda, mais velha, mais cansada, mais maltrapilha, aos vossos olhos, tentem controlar a vontade de dizê-lo. Ou, se for tão incontrolável como aparenta, que digam nas costas.

Dos mesmos criadores de “estás com um ar cansado” e outros comentários das pessoas que gostam de se proclamar muito honestas e frontais mas são apenas umas bestas, vêm também as perguntas indesejadas. Assim como o “estás cansado” nos relembra abruptamente do nosso aspecto e faz-nos sentir mal com ele, as perguntas indesejadas relembram-nos do nosso estado e, mesmo que estejamos bem com ele, tentam abalá-lo: “E namorado?” para quem está solteiro; “E casamento?” para quem está a namorar; “E filho?” para quem casou; “E outro filho?” para quem já tem um; “E para quando o terceiro?” para quem já tem dois.

Assim como seria sempre possível alegar-se preocupação como o móbil de quem afirma que estamos cansados, seria possível declarar-se o mesmo para quem faz estas perguntas, mas a impertinência e a passivo-agressividade espreitam. Escapa aos demais pela aparente banalidade mas atinge o alvo lá no fundo.

Podem dizer-me que estou a exagerar. Que este não é um assunto face aos problemas do mundo. Que estou demasiado autoconsciente da minha imagem, demasiado sensível, demasiado frágil. E sim, é verdade. Mas peço-vos que me dêem o desconto. Ou uma cama. É que estou cansada.

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