E se os maravilhados pelo charme do poder deixassem Luís de Camões em paz?

Não merecia Luís de Camões tanto desprezo, mas está na natureza dos que, sem descanso, lutam por se manter sempre em bicos-dos-pés.

(…) que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
De uma austera, apagada e vil tristeza.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto X

Eles são os que, na sua intrínseca arrogância balofa, afirmam “não pertencer ao grupo de” qualquer coisa, desenganando também os que esperam deles uma atitude crítica e responsável relativamente a uma situação polémica. Eles são ainda os que, sob uma candura pegajosa, escondem uma hipocrisia de tamanho desmedido. Têm todos em comum o “estarem disponíveis para servir o país”, confessando-se todos, por coincidência, uns de forma mais intensa do que outros, fiéis ao ensino e saudosos dos seus alunos e das suas aulas aos quais voltarão quando o país os libertar. “Por nada deste mundo deixarão de ser professores”, esperam apenas o momento certo. Em todos sobressai ainda a mania superlativa de se porem em bicos-de-pés, não porque sejam forçosamente baixos, e, por sinal, até são, mas porque sempre procuraram, ávida e rapidamente, enveredar pela carreira política (não pondo de parte a necessidade de jogadas que assegurem o objectivo), maravilhados que vivem pelo charme do poder, com a miríade de trunfos que dele poderão obter. Quem não os conhece?

Comecemos pelo exemplo mais recente no tempo: primeiro com um pé no 25 de Abril e depois com outro já abençoado na Cultura. Democrata, pensa ele, não pertence orgulhosamente ao grupo dos que “censuram as tradições”, no caso, as touradas, expondo a sua consentida incapacidade de pensar, num gesto talvez de agradecimento ao poder que lhe sossegou os pés. Tudo em consonância e até a RTP ilustrou as palavras do ministro com uma pega de forcados não sei de onde, em que o primeiro do grupo limpava o sangue do rosto depois de o ter mergulhado no cachaço ensanguentado do touro, resultado da destreza e da coragem dos cavaleiros que diminuem a força dos animais, enterrando-lhes elegante e corajosamente vários ferros no cachaço. É a tradição, e a seu favor há quem invoque o facto de Hemingway e de Picasso adorarem a selvajaria do espectáculo, como bons e apreciados machos que foram.

Uns, os “espetadores”, vêem, uivam de entusiasmo e aplaudem a tradição, sedentos de sangue, outros, os espetadores, praticam, garbosamente a cavalo, a selvajaria que a dita tradição significa, criando assim o tenebroso “espetáculo”, bem em consonância com as iluminadas inovações do acordo ortográfico de 90. A cultura a rebolar-se e a espojar-se no esterco da boçalidade que significa a recusa em fazer uma avaliação crítica das tradições, pactuando facilmente, surgida a oportunidade, turística ou outra, com corridas de galgos ou de cavalos (Pedro Santana Lopes esforçou-se por estas últimas, estando, por ironia, na Misericórdia), lutas de cães ou de galos, queima de gatos pretos, em objectos de barro (só para os assustar, dizem) e tantos outros exemplos que põem a nu o sadismo e a baixeza moral dos que sentem prazer na contemplação do sofrimento. A isto chama-se tradição e “não contem comigo para censurar tradições”, ministro da Cultura dixit.

O uso de “espetadores” e de “espetáculo”, por ordem do AO 90 que devorou tudo o que lhe cheirasse a etimologia, com a justificação “científica” de sanar “a teimosia lusitana” (ipsis verbis), na manutenção das consoantes surdas (“c” e “p”) não pronunciadas, é tão consensual que vemos em traduções, em manuais escolares, em exposições de museus vários, em folhetos culturais, conviver de forma contínua “espectadores” com “espetáculos” tão conscientes são os seus autores do ridículo a que se expõem. Falta-lhes, e sabemos porquê, a coragem de admitir o erro que constituiu a forçada implementação do AO 90. E a propósito da Cultura e do AO, impossível não lembrar a excelente crónica de Nuno Pacheco de 7 de Julho p.p., na qual se evidencia a sua habitual e fina ironia, e em que transcreve as várias anedotas do discurso do ministro da Cultura, estando em Angola para a celebração do Dia Mundial da Língua Portuguesa.

Na verdade, a Cultura deste e de anteriores ministros tem andado muito por baixo, reduzida a um mero cargo político que se ocupa da matéria sem chama alguma. O ministro até pode ser a favor do AO e esconder as suas razões, mas é imperdoável tanta baboseira e tanta ignorância destemidamente exposta. Não sei se por contágio, porque acontece amiúde com os novatos, ou por um momento de acentuado delírio ou por distracção ou ainda por tudo isto junto, o ministro da Cultura classificou o AO como “factor de inclusão” e “factor que permite combater as desigualdades”. Talvez também por influência do seu colega da Educação, João Costa, tenha Adão e Silva já interiorizado a confrangedora e reles retórica de persuasão, assente no miserabilismo, no absurdo e no desejo de iludir. Não será por acaso que “os coitados dos alunos desfavorecidos” são continuamente apontados e humilhados quando cinicamente se pretende defendê-los. Soa bem falar em “inclusão” ou em “combate às desigualdades”, mas não colhe aplausos porque desastroso, perverso e indigno é representar ou forçar a representação de uma farsa, farsa essa em que o acordo ortográfico afinal também intervém.

Recorde-se, a propósito do acima referido, a candura de João Costa ao afirmar que a pandemia desvendara a desigualdade existente, devido ao grande número de alunos impossibilitados de acompanhar as aulas através do computador, como se a situação não fosse sobejamente conhecida por ele, alertado também, e de forma contínua, pelos professores, e faço questão de afirmar que nestes não incluo os directores porque muitos têm voluntariamente abdicado da sua responsabilidade profissional e da sua liberdade de pensar criticamente. O mesmo observámos em relação à mencionada “recuperação do tempo perdido de aulas”, devido igualmente à pandemia. O que foi a recuperação da aprendizagem que não se fez? Onde se notou? Também não dei por ela e, neste caso, refiro-me ao 1.º ciclo.

Há quantos anos se fala da desmotivação dos professores, os mesmos que na recente apreciação de João Costa só se interessam pelos bons alunos, à semelhança de médicos que só tratam as pessoas sãs, sendo apontados de novo os “pobrezinhos” ao serem incluídos na classe de “doentes” que não recebem tratamento? Que preocupação houve em reflectir e tentar resolver a fraca apetência dos jovens pela actividade docente? E o que dizer do espanto hipócrita perante a falta gritante de professores durante o ano lectivo, uma situação que se arrasta há anos e se tem vindo a agudizar, sem que estratégia alguma seja planeada?

Na miserável, e para muitos infelizmente admirável, política do desenrascanço (que se diz ser qualidade intrínseca aos portugueses) longas mantas de retalhos vão sendo perpetuamente tecidas, tapando aqui e descobrindo ali, seja na Educação, na Saúde, na Agricultura ou noutras áreas, como exemplo certo a prosseguir o que, convenhamos, não é apanágio deste governo, mas também de muitos outros, com realce para os de maioria absoluta em que uma corte governativa cria, juntamente com o seu rei, a ilusão de bem reinar.

Por infelicidade, anda o poeta Luís de Camões na voz de quem, sem talento e sem estudo, mas também sem compaixão, o menciona, em discursos oficiais, usando-o, agora também, a propósito do acordo ortográfico, ao mesmo tempo que o aviltam porque, na verdade, nunca o leram, nem alguma vez compreenderam o significado da sua obra. Augusto Santos Silva, actual Presidente da AR (e na mira talvez do salto para uma Presidência da República), sendo ministro dos Negócios Estrangeiros, sob cuja tutela se encontra o Instituto Camões, referiu, no intuito de justificar o acordo ortográfico, “não pertencer ao grupo que apelida o português de língua de Camões”, preferindo dizer língua de Pepetela, de Mia Couto ou de Clarisse Lispector. Não merecia Luís de Camões tanto desprezo, mas está na natureza dos que, sem descanso, lutam por se manter sempre em bicos-dos-pés. Cansativo, mas compensador.

O certo é que o ministro da Cultura não deixou também de mencionar o poeta, em Maio p.p., em Angola, e transcreverei as suas palavras, como um portentoso exemplo da ignorância reinante e do uso que se faz da política, servindo-me de novo da crónica do jornalista Nuno Pacheco: “Temos sempre uma língua viva, dizemos que é a língua de Luís de Camões. O português que falamos hoje tem muito pouco a ver com o que era falado por Luís de Camões, a ortografia d’ Os Lusíadas tem aspectos que não são os que nós consideramos a norma.”

Teria sido oportuno que Adão e Silva continuasse a sua explicação colegial sobre a língua de Camões, desenvolvendo também os tais “aspectos” a que se refere. Ficou-se contente por ali, certo de ter feito boa figura e compreendido o recado há muito recebido (é assim o contágio) de Augusto Santos Silva de quem a anterior ministra da Cultura também tinha medo a ponto de titubear o paradoxal: não ser o AO uma matéria do seu ministério. E para fechar o ramalhete, lembrar que João Costa também não nutre grande afeição por Luís de Camões. Na reforma de 2003, juntamente com a Associação de Professores de Português (APP), apoiou a saída de toda a Literatura dos programas de Português, excepção feita para os alunos que seguiriam Humanidades, o que felizmente não aconteceu devido à polémica suscitada.

A Literatura acabou, no entanto, por ceder o lugar “à competência da comunicação” e à “funcionalidade da Língua”, preconizando-se por isso “uma simplificação dos conteúdos literários”. E assim, no Programa de Português do 10.º ano, fomos surpreendidos com a sugestão da “leitura de dois ou três sonetos de Luís de Camões”, “escolhidos de entre os melhores” (sic), com a preocupação de que os mesmos se incluíssem em “textos de carácter autobiográfico”. Foi ainda João Costa, inventor da TLEBS (nunca é demais dizê-lo) e acérrimo defensor do “funcional”, do “real” e do presente, quem defendeu, na Gulbenkian e na televisão, que os professores não deveriam “perder tempo a contextualizar um autor e a sua obra”, perguntando jocosamente de que serviria aos alunos “saber que um escritor nascera em Freixo-De-Espada-À-Cinta”? A esta enormidade responder-lhe-iam Cesário Verde, Pessoa, Ruben A., Chagall, Van Gogh, Munch, Sara Afonso, Frida Khalo, Stravinsky, Prokofiev, Mahler etc., etc., etc.

Ainda vai a tempo de aprender o que não sabe, em matéria literária e artística, Sr. ministro da Educação, um conselho que dirijo igualmente ao Presidente da Assembleia da República e ao ministro da Cultura. Entretanto, deixem Luís de Camões em paz!

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