Covid-19: resposta do SNS com “impactos profundos” nos cuidados de saúde

Relatório do Conselho Nacional de Saúde alerta que os direitos e liberdades foram desafiados por uma “omnipresente saúde pública” durante a pandemia de covid-19 em Portugal. Mortalidade dos idosos leva a rejuvenescimento da estrutura etária do país.

Foto
Relatório pede um robustecimento do SNS, a reforma da saúde pública e a protecção dos vulneráveis Manuel Roberto

A resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) à pandemia teve “impactos profundos” nos restantes cuidados prestados, alerta o Conselho Nacional da Saúde, que aponta uma redução de 700 mil cirurgias programadas e de 50 mil urgentes em 2020.

“A organização da resposta em cuidados de saúde à covid-19 teve impactos profundos na prestação de cuidados de saúde não-covid substanciados na alteração da actividade assistencial, na redução das actividades relacionadas com a prevenção da doença ou promoção da saúde”, sublinha o relatório “Pandemia de covid-19: Desafios para a saúde dos portugueses”, divulgado esta segunda-feira.

Segundo o documento do Conselho Nacional da Saúde (CNS), comparando com a média de 2015 a 2019, em Portugal continental registou-se uma redução de 19% no número de intervenções cirúrgicas programadas em 2020, ou seja, menos cerca de 700 mil cirurgias, com redução superior (23,1%) nas cirurgias convencionais.

Mesmo as cirurgias urgentes tiveram uma diminuição de 8,3%, com menos cerca de 50 mil realizadas no primeiro ano da pandemia, refere o órgão independente de consulta do Governo, que concluiu ainda que pouco menos de 3/4 das consultas foram realizadas dentro do Tempo Máximo de Resposta Garantido em 2020, valor que voltou a subir para os valores pré-pandemia em 2021.

De acordo com o documento, durante 2020 e 2021 registou-se também uma quebra do número de consultas médicas nos cuidados de saúde primários, comparativamente ao período de 2016 a 2019, assim como uma diminuição de 1,1 pontos percentuais da cobertura da população inscrita com médico de família, contrariando uma tendência crescente verificada em anos anteriores.

“Nos cuidados de saúde hospitalares a redução da proporção de utentes com acesso a cuidados foi um pouco mais marcada”, refere o documento, ao avançar que, em 2020, houve uma redução de 12,2 a 21,6% das primeiras consultas hospitalares, sendo esta diminuição menos acentuada nas consultas subsequentes (entre 0,04% e 16,6%).

Também os cuidados de saúde preventivos sofreram uma “forte disrupção com a pandemia”, particularmente evidente em 2020, indica o documento, alertando que, se a diminuição da actividade assistencial tem implicações profundas no imediato, os impactos na área dos cuidados preventivos e de promoção da saúde “certamente se encontrarão com maior evidência no avanço da linha do tempo”.

De acordo com o relatório, a vigilância das pessoas com diabetes sofreu um “impacto significativo”, com redução da proporção de vigilância do pé diabético ou controlo de hemoglobina glicada.

“Existiu igualmente uma redução de 102.812 pessoas rastreadas para a retinopatia diabética no ano de 2020”, indica o CNS, que avança que menos 174.218 mulheres foram rastreadas para o cancro da mama, menos 124.835 mulheres para o cancro do colo do útero e menos 34.920 pessoas rastreadas para o cancro do cólon e reto.

“Quanto aos rastreios de âmbito populacional, em 2020, em Portugal continental, a proporção de população elegível rastreada para o cancro da mama decresceu quanto à média dos anos 2016-2019, com uma redução de cerca de dez pontos percentuais relativamente a 2019”, sublinha o documento.

O número de utentes com problemas relacionados com álcool em tratamento diminuiu de 2019 para 2020 em cerca de 8%, com uma redução de quase 50% do número de novos utentes em tratamento e 30% dos utentes readmitidos.

Apesar das reduções, o CNS assinala que “não houve paragem dos cuidados, embora estes tenham ficado fortemente comprometidos” durante a pandemia de covid-19.

No que diz respeito aos recursos humanos, entre 2018 e 2021, verificou-se um aumento de 16,3% no número de trabalhadores no SNS, sendo que o grupo com maior aumento foi o dos assistentes operacionais (24,2%), seguido do dos técnicos de saúde (22,1%) e do dos técnicos de diagnóstico e terapêutica (20,9%).

O número de médicos - sem considerar internos de especialidade - cresceu 11,9% e o de enfermeiros 16,8% entre 2018 e Agosto de 2021.

Relativamente à saúde mental, o relatório do CNS recorda que, em Portugal, existiram dois períodos de confinamento geral - de Março a Abril 2020 e de Janeiro a Março 2021 - que colocaram a questão do seu “impacto nos níveis de solidão, depressão, uso nocivo de álcool e outras drogas e comportamentos de auto lesão”.

“A generalização, quase instantânea, do teletrabalho provocou sentimentos de isolamento social e solidão que, por sua vez, reduziram a capacidade de lidar com as mudanças na carga de trabalho e no tempo de trabalho, afectando adversamente os níveis de stresse e o bem-estar mental e físico dos trabalhadores”, refere o documento.

No geral, o CNS alerta que a pandemia poderá ter, directa e indirectamente, afectado a saúde mental da população e levado ao aumento de procura dos serviços relevantes.

“Medo, luto, isolamento, perda de rendimento poderão ter desencadeado novos problemas de saúde mental ou agravado os preexistentes, assim como a própria covid-19 poderá aumentar o risco de morbilidade psicológica e neurológica, a curto e médio prazo”, adianta.

O documento, que é apresentado esta segunda-feira numa sessão na Assembleia da República, analisa o impacto da pandemia nos principais indicadores sociodemográficos, na saúde mental da população e na prestação de cuidados de saúde.

Criado em 2016, o CNS é um órgão independente de consulta do Governo, que visa garantir a participação dos cidadãos na definição das políticas de saúde e promover uma cultura de transparência e de prestação de contas perante a sociedade.

Direitos e liberdades desafiados por uma “omnipresente saúde pública”

Os direitos e liberdades individuais foram “desafiados por uma omnipresente saúde pública” na pandemia, uma crise sanitária que obrigou os cidadãos a “lidar com a visibilidade pública da morte e da doença”, considera ainda o Conselho Nacional da Saúde.

“Os direitos e liberdades individuais foram desafiadas por uma omnipresente saúde pública a quem se pediu o compromisso prescritivo de atitudes que evitassem, afinal, a morte”, refere o relatório.

Segundo o documento do CNS, um “desafio inequívoco da pandemia” foi obrigar os cidadãos a “lidar com a visibilidade pública da morte e da doença”, mas também com o sofrimento, o medo, a impossibilidade de se movimentarem livremente e a necessidade de trabalhar por obrigação atrás de ecrãs.

“A crise sanitária transformou-se num facto social global e transferiu para a saúde pública – nas suas múltiplas declinações – uma liderança política até então inesperada e para a qual estava pouco preparada”, salienta ainda o órgão independente de consulta do Governo.

O relatório, que pretende ser uma reflexão sobre a forma como a pandemia e as medidas tomadas de resposta afectaram a população a vários níveis, salienta que a recuperação económica em 2021 foi prejudicada pelo crescimento epidémico no primeiro trimestre do ano, mas depois acelerou, sendo que Portugal será um dos países que não conseguiu recuperar nesse ano o nível de actividade pré-covid.

“Em 2020 Portugal interrompeu a trajectória de convergência que a economia nacional prosseguia há quatro anos consecutivos. A perda do PIB português face ao previsto foi de 36 mil milhões de euros em dois anos”, adianta o documento.

O órgão presidido por Henrique Barros considera também que a pandemia representou a “disrupção violenta e repentina” da organização do quotidiano, na forma de conviver e de comunicar, “duas actividades essenciais ao ser-se pessoa”.

“A rápida designação de confinamento, numa acepção nova, invadiu a vida lexical e social, e, associada à imposição da distância física e do uso de máscara facial, perturbou e muito o que como equilíbrio emocional as sociedades humanas tinham construído”, reconheceu o CNS.

De acordo com o documento, a covid-19 foi ainda responsável por novas formas de “conciliar a tomada de decisão política com a inspiração útil do melhor conhecimento científico”, fazendo sobressair um “lugar inesperado para a saúde pública”.

A pandemia exigiu uma “enorme capacidade de adaptação, dedicação e esforço” dos profissionais de saúde, obrigou ao estreitar da articulação dos serviços de saúde com as instituições do sector social e as autarquias e acelerou a informatização e desburocratização de vários processos, como a emissão de declarações de isolamento profiláctico, sublinha o relatório.

Robustecer o SNS, reformar a saúde pública e proteger os vulneráveis

O CNS defende também que o Serviço Nacional de Saúde tem de ser repensado, que a saúde pública seja reformada e a protecção das pessoas vulneráveis reforçada.

“Repensar e robustecer o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em recursos humanos (sobretudo médicos e enfermeiros), organizacionais e financeiros, com vista a assegurar a recuperação dos cuidados e a garantir a resposta a emergências de saúde pública, minimizando o seu impacto na prestação de cuidados assistenciais e actividades preventivas” é uma das recomendações que consta do relatório.

Este órgão independente e de consulta do Governo aconselha ainda que seja iniciada uma “profunda reforma” dos serviços de saúde pública, revendo matérias como a autonomia, os encargos e os recursos, nos seus vários níveis - central, regional e local.

De acordo com o conselho presidido por Henrique Barros, esta reforma deve assegurar a interdisciplinaridade das equipas, garantindo os recursos especializados essenciais para as funções da saúde pública, e dedicando uma “atenção especial” às crises sanitárias e, em particular, às emergências infecciosas.

Nas suas recomendações, que resultam dos “desafios vividos” durante a pandemia e que pretendem contribuir para uma recuperação e reforço da resposta para uma melhor da saúde da população, o CNS preconiza ainda uma análise “transparente, exaustiva e sistemática” ao efeito da covid-19 no sistema de saúde, considerando o desempenho institucional e os resultados das políticas e acções implementadas.

“Desta análise, espera-se um contributo determinante para um plano que garanta a normalidade dos cuidados e a sustentabilidade do SNS e do restante sistema de saúde perante futuras emergências de saúde pública”, advoga o organismo.

A avaliação do CNS constatou ainda a necessidade de reforçar as políticas sociais com impacto directo e indirecto na saúde e no bem-estar das famílias mais desfavorecidas, preconizando a urgente implementação de medidas específicas de recuperação da aprendizagem e promoção do bem-estar das crianças, com especial atenção aos alunos mais afectados pela pandemia e com maiores dificuldades escolares.

Mortalidade dos idosos leva a rejuvenescimento da estrutura etária do país

A mortalidade por covid-19 nos idosos levou a um rejuvenescimento da estrutura etária em Portugal, onde se registou um excesso de 12 mil mortes em 2020, avança o relatório do CNS.

“O facto de os indivíduos mais velhos terem sido os mais atingidos pela mortalidade por covid-19 tem um impacto nas tendências de envelhecimento da população. No curto prazo, regista-se um certo rejuvenescimento da estrutura etária - não por aumento da natalidade, mas por decréscimo da sua população mais velha - e uma diminuição do índice de longevidade”, lê-se ainda no documento.

Segundo o documento deste órgão independente, em 2020, primeiro ano da pandemia, registou-se um excesso de cerca de 12 mil óbitos, comparando com o número médio de mortes observadas entre 2016 e 2019.

“Este excesso de mortalidade iniciou-se logo no mês de Março de 2020, continuando ao longo dos restantes nove meses desse ano, e nos meses de Janeiro, Fevereiro e de Julho a Dezembro de 2021, ainda que com menor expressão”, adianta o documento do CNS.

Em 2020, as regiões com maior excesso de mortalidade, comparando com a média de 2016-2019, foram o Norte, com 154 óbitos por 100 mil habitantes, o Alentejo (144 mortes) e a Área Metropolitana de Lisboa (106 mortes).

“Se o excesso de mortalidade observado em Março e Abril e de Outubro em diante coincidiram com os picos de incidência da infecção (primeira, segunda e início da terceira vaga), o excesso de mortalidade sentido no final de Maio e entre Julho e Agosto de 2020 não coincidiu com incidências elevadas no país”, revela o documento.

A taxa de mortalidade em Portugal subiu de 10,9 por mil em 2019 para 12 em 2020 e cerca de 19 mil pessoas perderam a vida com covid-19 até ao final de 2021.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários