A retórica nuclear russa ou a ilusão de uma vitória impossível

O raciocínio em matéria de armas nucleares é exclusivamente político: não há possibilidade alguma de “vitória militar”.


A invasão criminosa da Ucrânia tem sido acompanhada de manifestações inflamadas por parte de dirigentes do Kremlin que incluem gravíssimas ameaças com “armas de energia nuclear”. A censurável e perigosa retórica russa, por um lado, e inúmeras imprecisões na apreciação da questão, por outro, exigem que se aprofunde o tema. Um dos mais marcantes traços do longo período internacional entre 1945 e 1991 foi indubitavelmente a inexistência de hostilidades abertas entre os Estados Unidos e a União Soviética. Um ciclo de paz inusual considerando o antagonismo e as diferenças irredutíveis entre as superpotências de então. A ausência de confrontação e a extrema prudência com que os dois actores se relacionavam encontra explicação na detenção de bombas atómicas e na convicção absoluta de que nenhum poderia vencer um conflito nuclear ou tirar dele uma vantagem.

O cálculo era relativamente simples: os dois contendores partilhavam o princípio de que um ataque com armas nucleares, por qualquer das partes, se traduziria sempre num terrível holocausto com consequências irremediáveis para o conjunto da humanidade e para o próprio planeta. Assinale-se, a propósito, o estabelecimento de uma prudente “hotline” de comunicação directa entre as duas capitais logo após a crise dos mísseis de Cuba de Outubro de 1962. O pensamento nuclear assenta na lógica de aniquilação recíproca, isto é, num cenário de “destruição mútua garantida”, mais conhecido por doutrina MAD. Os custos anulam inapelavelmente qualquer veleidade ou expectativa de ganhos. O mesmo seria dizer, a ilusão de uma vitória impossível.

No célebre livro The age of overkill, da autoria do jornalista e grande pedagogo Max Lerner, publicado em 1962, referia-se de modo pungente que as potências atómicas tinham acumulado tal poder destrutivo que aquela putativa capacidade se tinha tornado, na realidade, num “instrumento” sem possibilidade fundada de utilização. As armas nucleares não têm, pois, conceptualmente, uso racional. São, digamos, quase não-armas, ou, nas palavras de Bernard Brodie, uma espécie de arma absoluta! Daí que o espectro de “confrontação nuclear” aventado por parte de dirigentes do Kremlin seja tão inverosímil quanto irresponsável.

Vejamos: o pensamento estratégico no domínio das forças nucleares ou, mais precisamente, o conteúdo específico da teoria da dissuasão nuclear, não prevê ou estipula o seu efectivo uso. A aquisição ou detenção de uma capacidade desta natureza destina-se exclusivamente a impedir o “outro lado” de accionar um primeiro ataque. A noção de “dissuasão” é, consequentemente, crucial para compreender qualquer equação em matéria nuclear. É fundamental considerar que a noção mesma de dissuasão se baseia paradoxalmente na ameaça de retaliação, tecnicamente possível devido à existência real da chamada “janela de oportunidade” – os Estados têm o tempo necessário para “retaliar” antes de as ogivas atingirem o seu território. Claro que a ameaça de retaliação exige um cometimento irrevogável em retaliar – um requisito essencial para que o “atacante” não possa entrever, em caso algum, uma hesitação de quem é “atacado”. Em suma, a dissuasão é estabelecida pela comunicação de uma ameaça de retaliação credível e inquestionável, e pelo reconhecimento concomitante dessa prospectiva por parte do “atacante” potencial.

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Hiroshima, 6 de Agosto de 1945 Reuters

A noção de guerra nuclear configura-se, pois, como uma pura abstracção teórica. Não obstante, é necessário considerar que situações de especial perigo poderão ocorrer em resultado de irracionalidade, inadvertência, perda de controlo, situações de bluff ou tentativas deploráveis de enganar os adversários. Por isso, as sucessivas diatribes de dirigentes russos sobre o “uso de armas nucleares” são totalmente inaceitáveis num quadro em que se exige extrema prudência e racionalidade.

Acresce que, ao invés da lógica convencional, no âmbito do pensamento nuclear a dissuasão é “alcançada” por armas que não têm uso prático possível para a defesa. Porquê? Na exacta medida em que numa confrontação nuclear nenhum dos lados se pode salvar, ou seja, não há defesa possível no sentido em que cada lado pode efectivamente destruir o outro independentemente de quem ataca primeiro. Como acentuou Thomas Schelling, o raciocínio em matéria de armas nucleares é exclusivamente político: não há possibilidade alguma de “vitória militar”. As decisões são, pois, sempre políticas! Todos temos consciência de como uma confrontação nuclear poderia começar, mas não saberemos nunca como terminará. A incerteza e o medo recíproco de destruição incondicional são, por maioria de razão, determinantes.

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