Um vento feito de propósito para nos desarrumar o cabelo

Do outro lado da piscina, sentada ao lado daquela que parecia ser a mãe, uma rapariga talvez com 15, 16 anos vestia um macacão preto e largo. Estava demasiado calor sem vento para que uma jovem rapariga se cobrisse daquela maneira.

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Deitada na espreguiçadeira à beira da piscina, retive-me na frase: “Um vento feito de propósito para nos desarrumar o cabelo.”

Sem vento nem aragem morna que levantasse sequer um pêlo miúdo dos braços, resolvi interromper a leitura e mergulhar na água sobrelotada de crianças. Era o hotel possível, com a piscina possível, na zona possível do país. As possibilidades da carteira que determinam todas as outras possibilidades.

Do outro lado da piscina, sentada ao lado daquela que parecia ser a mãe, uma rapariga talvez com 15, 16 anos vestia um macacão preto e largo. Estava demasiado calor sem vento para que uma jovem rapariga se cobrisse daquela maneira. As únicas partes visíveis do seu corpo: a cara, o pescoço, os braços e as mãos, uma extensão de pele marmórea, talvez devido ao Inverno rigoroso. Demasiado magra para ser saudável. Podia ler-se a anatomia de um esqueleto nos seus braços.

Mergulhei, talvez o meu olhar fosse intrusivo. Não tinha nada com isso, não queria ser essa pessoa. Debaixo de água deixava de ouvir os gritos dos miúdos. Nadei o mais que pude até tocar no fundo da piscina. Dois metros e trinta de profundidade. Voltei à tona momentos depois, sem ar, ofegante, e novamente o rebuliço veraneante entrou-me pelos ouvidos ainda tapados com água, cloro e muito provavelmente urina de algum dos miúdos. A rapariga à beira da piscina com a mãe despiu o macacão, pousando-o na espreguiçadeira uns dois metros atrás de si. Assim desnuda, só com o biquíni preto, percebia-se com clareza que alguma doença, física ou psiquiátrica, assolava aquela rapariga. Magra, como só a doença pode operar no corpo de uma pessoa, assim estava perante todos na piscina, inibida, constrangida, sentando-se novamente junto da mãe à beira da piscina, como se tivesse menos uma década de idade.

O corpo a pedir protecção materna, com os olhos postos no chão e o esqueleto encostado à progenitora. Os meus olhos marejados de cloro e de ternura atípica resolveram retirar-se daquele enquadramento que despenteava sem querer. Voltei à espreguiçadeira, ainda pingando água e realidade, e regressei às frases do António, ao vento que vem das páginas e que despenteia de propósito.

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