As zínias
O passado soa-me melhor agora contado de trás.
Fui ver a praia de novo. Areal comido pelo mar, pouca gente. O esqueleto das barracas quase despido. Ainda assim, lembrei-me do pano frio e da areia a correr em fio no bolso do nosso abrigo durante um mês. No bolso da barraca guardávamos conchas e beijinhos e o que do mar recolhíamos. Soprava a nortada que não faz sentido noutro lugar.
Saí do carro para ver este postal que já não é o da minha infância e voltei a entrar. Ainda imaginei o corpo arrepiado quando o vento soprava sem piedade das nossas férias – do nosso contentamento. E, agora que penso, talvez o vento fizesse parte de tudo isto. O postal enviado, antes ou agora, levava areia e uma ponta de papel molhada pela água salgada. O passado soa-me melhor agora contado de trás.
No caminho que faço nestes dias, nestes novos rituais que inventei e que me fazem sentir crescida, aponto uma e outra casa. Caminhos onde me apercebi de que estava a pertencer a um lugar. Vejo as ruas pequenas, e os passos estão a ser feitos por outros. Já não sou eu, mas a história pertence-me.
Volto à casa onde a minha mãe me espera. Desta vez levo um livro de gravuras com flores e sento-me ao lado dela com adivinhas sobre o que o olhar detecta. A minha mãe trata as flores por tu e juntas descemos ao jardim mesmo antes de o percorrer.
Como é que em miúda não me dava conta da beleza de tudo isto? E como não percebi que ela encontrava nas flores o seu refúgio, como quando andamos a fugir de um mundo que teima
em ser áspero e nós procuramos a saída que diz beleza? Não diz, mas inventamos esse mundo para continuar nele.
As mãos frágeis da minha mãe tocam nas gravuras: há narcisos, peónias, rosas exóticas. Flores que ela diz ter e outras que já deixaram um lugar vago (entretanto ocupado). Pétalas que nos acenaram, outras que nem tempo tiveram de deixar o seu perfume. Lembro-me perfeitamente do cheiro de uma rosa que parecia veludo. A minha mãe às vezes punha uma delas num copo tosco, e aquilo era suficiente para gerar o meu espanto ainda sem muitas reflexões: só a possibilidade de os sentidos se espreguiçarem como se nem dessem conta de que viviam em mim.
Acabámos o livro com as páginas vistas uma e outra vez. A nortada atravessa a praia e chega ali a casa. Cubro as costas da minha mãe e peço-lhe para irmos até ao jardim: o jardim real, aquele que teve as mãos dela fortes, tantos anos. Então fazemos como no livro: ela diz o nome das flores de cor e eu pergunto: “E aquela? E ali?” Por momentos, ela esquece-se do resto, e eu quero muito guardar este momento para sempre. Este lugar onde só as duas andámos a atirar o nome das flores como quando eu era criança e jogávamos ao jogo do stop: flores, frutos, países, cores. Há uma ingenuidade que me comove. O mundo já é outro. Nenhum stop resulta.
Num canteiro mais abrigado reinam as zínias. Não estavam no livro. São farfalhudas e é como se escondessem histórias já vividas. Somos nós – pensei eu entre dentes. Todos nós escondemos histórias, umas mais felizes do que outras. Nem tudo o que está à superfície e é visível nos define, porque muitas vezes somos muito mais o que escolhemos não contar e deixar
que a história aconteça dentro de cada um – no mais fundo e frágil de si.
As zínias de cores vibrantes são como nós quando temos de fazer de conta de que nos mantemos de pé e os sentimentos não nos derrubam e a vontade de construir mais um dia não nos deixa colados ao chão.
Agora, e já com a nortada só como memória, tenho as zínias na cabeça. Uma janela de tempo onde fui e sou feliz. A nortada não as derruba e elas vingam entre muros, abrigadas do que não interessa.
Não há mal nenhum em querer ser uma flor que resiste.
No jogo dificilmente nos deixavam chegar ao Z.
Stop.