O Teatrão explora os caminhos do trabalho no vale da Arregaça

Depois de um longo processo de mapeamento, companhia encena espectáculo-percurso em Coimbra, com a participação de moradores. De hoje a segunda-feira, sempre às 19h.

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Os Caminhos do Trabalho conta a participação de moradores da Arregaça Carlos Gomes
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Este é a segunda peça do projecto De Portas Abertas, que começou em 2019 Carlos Gomes

“É na cidade, mas já não é na cidade”, diz Graça Reis, a dada altura da conversa com o PÚBLICO. Tem 78 anos e há 45 que vive no vale da Arregaça, em Coimbra. A explicação aparentemente contraditória ajuda a descrever o sítio onde mora, uma mancha em torno da qual a cidade cresceu, que conserva algumas características de vizinhança.

Graça Reis é uma das moradoras que integram o elenco do espectáculo-percurso Os Caminhos do Trabalho, a segunda peça do projecto De Portas Abertas, que a companhia de Coimbra, O Teatrão, tem vindo a desenvolver na Arregaça, desde 2019.

Este segundo trabalho, que conta com a dramaturgia de Sandra Pinheiro e direcção musical de Rui Lúcio, é bem diferente da peça de 2020, explica a directora d'O Teatrão, Isabel Craveiro, sobre o espectáculo que se estreou hoje, tem nova data amanhã e está em exibição até segunda-feira (sempre às 19h). A começar pela participação de quem ali vive e pela liberdade para andar pelas ruas.

O primeiro espectáculo d'O Teatrão na Arregaça acabou por não ser o que a companhia e os moradores esperavam. Em vez de correr as ruas e as portas das pessoas, acabou por estrear confinado às quatro linhas do campo de futebol do União de Coimbra, tendo o projecto sido apanhado pelo primeiro ano de pandemia.

Ainda assim, foi possível ir avançando com o processo de levantamento porta a porta, para aferir vontades dos moradores e perceber melhor aquele vale onde novos empreendimentos co-existem com habitação social e moradias mais recentes contrastam com pequenas casas de traça antiga e hortas. Daí passaram para as assembleias de rua que ajudaram a mapear os caminhos do trabalho na Arregaça, a reflectir sobre o seu passado e projectar o futuro. Mas esta é uma peça sobre o presente, sobre o processo de transformação do mundo laboral a que estamos a assistir, descreve Isabel Craveiro. Uma mudança que foi acelerada pela pandemia e que tem impacto em todas as esferas da nossa vida, da forma como nos relacionamos às possibilidades de subsistência, considera.

A vizinhança

É o caminho que cola as diferentes cenas, todas relacionadas com o trabalho: um despedimento de um trabalhador de uma fábrica, a filha que já tem 30 anos e vive em casa dos pais, a novo mundo do teletrabalho, a invisibilidade dos repositores e homens do lixo. Todas são ficção, embora inspiradas pelo contacto com as pessoas de um vale que ainda tem bem visíveis algumas das antigas linhas do trabalho.

A antiga Sociedade de Porcelanas de Coimbra, que encerrou em 2005, é uma delas. Graça Alves, de 58 anos, interpreta um papel de pintora de produtos cerâmicos, recorda-se bem, da correria dos trabalhadores, a saírem rápido da fábrica para irem almoçar a casa. O esqueleto do velho edifício fabril hoje devoluto serve de palco a uma das cenas. Aliás, um dos papéis que Graça Alves, também da Arregaça, interpreta é o de pintora de produtos cerâmicos de uma fábrica.

Apesar de permanecer uma certa sensação de ilha no meio da cidade, Graça Reis diz que a Arregaça mudou muito nos últimos anos. “Desapareceram as crianças que brincavam na rua”, lamenta, embora Graça Alves registe algumas excepções. Ao lado, Teresa Matias, que também tem 58 anos e também entra na peça, nota algum envelhecimento das pessoas e o abandono das casas. Quando fez parte do grupo de moradores que foram fazer o peditório porta a porta para as marchas, surpreendeu-a o número de casas vazias.

Isabel Craveiro diz que, além de todas as particularidades, a companhia deparou-se “com um problema de auto-estima, mas também há um estigma” da cidade em relação àquela zona. “É preciso perceber que questões como estas, das relações de vizinhança, também são aspectos positivos”, sublinha.

No tempo de duração do projecto acabou por fazer com que os membros da companhia tenham passado mais tempo na Arregaça e se tenham aproximado dessa vida de bairro. “Apesar de condicionados pela pandemia, criou-se uma relação de confiança com as pessoas”, descreve Isabel Craveiro. Houve o trabalho exclusivo de preparação da peça, mas também houve espaço para compor a cola comunitária. O último exemplo são as fogueiras de São João no bairro – e respectivo baile com comes e bebes - que voltaram em força depois de dois anos de restrições pandémicas e em torno das quais foram organizadas actividades como oficinas de danças tradicionais ou de construção de flores decorativas.

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