Multinacionais, o imposto mínimo mínimo

Tem sido falsamente anunciado que se concretizará uma tributação sobre as multinacionais justa, justamente distribuída e efetiva.

Ao longo das últimas décadas, a globalização impôs o comércio livre e a livre circulação de capitais aos países em vias de desenvolvimento. Aos países desenvolvidos nem por isso. O protecionismo continuou a ser permitido, mas só nas modalidades ao alcance das maiores economias, que patrocinam os seus campeões nacionais através de um cardápio de políticas públicas que inclui, entre outras, o direito a não pagar impostos. Os maiores grupos multinacionais são um retrato eloquente dessa realidade.

O sistema fiscal internacional, se é que faz sentido falar de tal coisa, não está adaptado a esta realidade. Isto permite a algumas das empresas mais lucrativas do mundo pagar níveis mínimos de imposto colocando as suas entidades constituintes em paraísos fiscais e usando despesas com juros, dividendos, rendimentos de propriedade industrial e outros instrumentos para deslocar os seus lucros para jurisdições em que a tributação seja pouca ou nenhuma.

Durante este período, todos os países têm sido crescentemente colocados perante um dilema: baixar os impostos sobre os rendimentos de capital (coletivos e singulares) ou ver esses rendimentos desaparecer através de operações contabilísticas pelas multinacionais, perfeitamente identificadas e protegidas legalmente (no caso europeu, por legislação comunitária). Registou-se assim uma “corrida para o fundo” da taxa de IRC efetiva e dissociou-se por completo o local da tributação daquele em que ocorre a atividade económica.

Esta estratégia é duplamente danosa para os países e os seus cidadãos. Em primeiro lugar, a perda de receita fiscal leva a uma transferência de carga fiscal para os rendimentos do trabalho. Em segundo, porque se esta compensação não for total, a consequência é um colapso do investimento e serviços públicos. Ficam por fazer políticas industriais e de inovação.

O acordo internacional da OCDE assinado por 137 países no final de 2021 é um precedente significativo. Reconhece que as multinacionais atuam a um nível transnacional e que, por isso, não podem ser tratadas como células sem ligação entre si. Admite que a incorretamente chamada “concorrência fiscal” não torna nenhuma economia mais “competitiva” e apenas atrasa o seu desenvolvimento. E consagra um compromisso internacional tão importante como limitado e frágil.

Para lá das fábulas, o acordo da OCDE é possível apenas pela pressão de vários Estados nacionais, com a França à cabeça, que se mostraram crescentemente indisponíveis para aceitar a expropriação da sua receita fiscal. Em alguns casos, como a França ou Espanha, isso levou à introdução de medidas nacionais como o imposto mínimo, também determinante para que avançasse o imposto digital Europeu. Sem estas medidas unilaterais, o acordo global teria ficado em águas de bacalhau para toda a eternidade.

No entanto, reconhecer este feito não implica não ter uma postura séria e esclarecida sobre o que está de facto em causa. Tem sido falsamente anunciado que se concretizará uma tributação sobre as multinacionais justa, justamente distribuída e efetiva. Vejamos por pontos.

Não é uma tributação generalizada sobre as multinacionais, uma vez que só uma parte será abrangida. A diretiva prevê que a aplicação da taxa mínima seja feita apenas a grupos que tenham registado um volume de negócios de 750 milhões de euros em pelo menos dois de quatro anos consecutivos. Mundialmente, apenas entre 10 e 15% das multinacionais têm este tipo de volume de negócios. A própria legislação europeia define como grupo económico de grandes dimensões aquele que registe anualmente 40 milhões. Espanha foi mais longe e aplicou um imposto mínimo a partir de 20 milhões. Qualquer uma destas referências teria sido mais sensata. Para além disso, o imposto também não se aplica a multinacionais cuja entidade mãe seja um fundo de pensões ou imobiliário.

Não é efetivo porque está cheio de exclusões, deduções e exceções. Existem principalmente três que importa destacar. Está excluído do rendimento tributável aquele que decorre de atividades de transporte marítimo internacional. A justificação, totalmente arbitrária, é o facto de este setor ter normas fiscais particulares. Depois, não se aplica o imposto complementar, ou seja, a diferença que perfaz os 15% efetivos, a empresas constituintes que num determinado ano tenham receitas inferiores a 10 milhões de euros ou rendimento inferior a 1 milhão. Por fim, com o pretexto de atrair investimento produtivo, aplica-se um alívio na tributação associado a “critérios de substância”. Isto traduz-se num desconto no rendimento tributável de 8% do valor de ativos tangíveis e 10% de gastos com pessoal. O Observatório Fiscal Europeu mostra que só na primeira década se perde 23% de receitas fiscais na UE.

O imposto não é justo porque será aplicada uma taxa muito mais baixa do que é aplicado na maior parte dos países e para a maior parte das empresas. A proposta inicial era de 21%, mas por pressão de alguns países, em particular a Irlanda, desceu para “pelo menos” 15%, e novamente até que acabou nos 15%. Em 2020, apenas seis países na UE 27 tinham taxas efetivas de tributação menores que 15%. Em outubro, o Observatório Fiscal da UE estimava que uma taxa de 21% aumentaria a receita fiscal na UE de 83 para 170 mil milhões de euros e que 25% significaria mais de 234 mil milhões. Finalmente não é justamente distribuído, porque o mundo desenvolvido fica com uma fatia esmagadora dos lucros tributados.

Todos estes alçapões não têm apenas efeitos estáticos na tributação que podemos esperar que resulte deste acordo. Terão efeitos dinâmicos que resultarão da adaptação das empresas multinacionais ao novo quadro legal, explorando as múltiplas hipóteses de evasão abertas pelo acordo. Mesmo que seja efetivamente transposto para as várias legislações nacionais, o que está longe de estar garantido, a primeira certeza que temos é que terá de ser rapidamente revisto.

É preciso, finalmente, preparar o terreno para dois cenários crescentemente plausíveis. Em primeiro lugar, uma recusa dos Estados Unidos em implementar o acordo ou fazê-lo de forma incompleta. Nesse caso, a União Europeia tem de desbloquear imediatamente todas as medidas unilaterais que ficaram em suspenso, sob pena de permitir que o acordo da OCDE sirva meramente para as neutralizar enquanto se perde ainda mais tempo em negociações internacionais.

Em segundo lugar, ainda há a possibilidade de algum Estado-membro vetar a sua implementação na UE, como já aconteceu, embora por razões terceiras. Nesse caso, os restantes Estados-membros devem avançar em regime de cooperação reforçada, incluindo medidas para se protegerem dos Estados-membros que ficarem de fora a fazer dumping fiscal.

Ainda falta um longo percurso para que este modesto precedente possa ver a luz do dia. Vai ser necessária muita determinação da parte daqueles que efetivamente combatem a evasão fiscal contra o exército dos “adiadores” que proclamam esse combate em teoria, enquanto o sabotam na prática.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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