Creches: da gratuitidade geral ao logro total

As soluções baseadas em crescimento da rede pública são sempre morosas, e há capacidade instalada no ensino particular e cooperativo.

No tema das creches, assistimos uma vez mais a anúncios de expansão da rede e anúncios de gratuitidade, mas falta um plano concreto e realista. As famílias precisam de organizar a sua vida para terem mais filhos, lidar com a incerteza de apoio e equilíbrio com o trabalho, as crianças devem poder beneficiar de formação e estímulos antes de entrarem no regime formal de educação, e as políticas públicas precisam de efetivamente servir os cidadãos. Pelos vistos, nenhum destes argumentos é suficiente para fazer uma política consistente e efetiva de educação e de suporte à primeira infância.

Há tanto, ainda, por fazer na educação da primeira infância em Portugal, particularmente se olharmos para questões como:

  • o acesso a rede de instituições de ensino
  • a efetiva proteção de crianças mais vulneráveis.

A universalidade do acesso ao ensino desde os zero anos é fundamental. A todas as famílias que desejem que as suas crianças ingressem na escola deve ser dada oportunidade de o conseguirem. Para isso, é essencial que:

  • deixe de haver falhas na oferta, ou seja, é necessário que se concretize um maior número de vagas;
  • se trabalhe na igualdade de oportunidades no acesso, para que as famílias com menores possibilidades económicas possam aceder.
  • O que os dados e análises nos revelam é que a frequência das instituições de educação nos primeiros anos de vida é fortemente condicionada pela condição socioeconómica das famílias, pelo que é urgente que o sistema, bem como o modelo de financiamento, sejam alterados.

Em primeiro lugar, o problema da falta de vagas: há que reconhecer que se trata de um problema que se perpetua e que não está a ser solucionado. E não nos iludamos: trata-se também do resultado de opções ideológicas. Também há que ter em conta que as soluções baseadas em crescimento da rede pública são sempre morosas, e há capacidade instalada no ensino particular e cooperativo. Não podemos dar ao luxo de não aproveitar e, mais uma vez, tem de haver a capacidade de olhar para a criação de uma rede de prestação, para além da propriedade e do financiamento. Ao Estado compete assegurar o acesso, e é mais um tema onde o modelo tem de ser repensado.

É importante reconhecer que há anos se fala da expansão da rede pública de creches e que as soluções atuais para esse desígnio estão esgotadas. Deveria ser reconhecida a urgência e, com isso, trabalhar-se em soluções novas, concretas e adequadas à conjuntura atual.

Em segundo lugar temos o tema das “creches gratuitas”. E foquemo-nos aqui no anúncio da “gratuitidade geral” que o primeiro-ministro fez já no “Orçamento do Estado chumbado”. Ou, diria mesmo, concentremo-nos “no logro da gratuitidade anunciada”. É que a gratuitidade geral comunicada com a pompa, afinal, não o é. Altamente condicionada pelo fasear de idades que vão sendo abrangidas, não possui uma classificação com critérios claros e não dá prioridade às famílias que mais necessitam de apoio. Também não se clarifica o número de vagas disponíveis, talvez porque na prática não se queira explicar que se restringe a vagas apenas em creches com acordos com a Segurança Social, o que significa que tem uma taxa de cobertura nacional inferior a 45%. O anúncio parece mais uma proclamação do que um plano de ação.

Note-se que o Governo continua a rejeitar soluções alternativas. Se o Governo quisesse, verdadeiramente, resolver o tema, com brevidade e garantia de qualidade, tomaria iniciativas funcionais, como:

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Adriano Miranda
  • a revisão do modelo de financiamento às famílias e dos estabelecimentos;
  • inclusão de todos os estabelecimentos na solução: rede publica, privada e cooperativa;
  • aumento da autonomia e liberdade dos estabelecimentos e simplificação e agilização de licenciamento para aumento de número de vagas.

A política (e a urgência) da existência de creches acessíveis a todas as famílias não é apenas uma questão de apoio à primeira infância. É também uma forte política de incentivo à natalidade. A incerteza de poder frequentar uma creche reduz, adia ou mesmo inviabiliza a própria decisão de ter filhos; é um problema crónico que se revela um verdadeiro entrave à natalidade no nosso país. A resolução deste problema é tida como um dos principais incentivos em termos de políticas públicas para o inverno demográfico.

E nunca é de mais recordar que, deste problema crónico, saem sempre mais prejudicadas as famílias mais desfavorecidas.

Temos exemplos, graves e muito recentes de erros resultantes da falta de cooperação com os sectores privado e social na Saúde, com sérios danos para a saúde e bem-estar das pessoas, ou de promessas ocas como a que atribuía um médico de família a cada utente inscrito no SNS, e que escutamos desde 2015. Vai-se repetir o mesmo fundamentalismo ideológico? Não se aprende com os erros?

Repetir os erros e as falhas nas políticas a implementar com o tema com as creches não se faz – afinal, passámos mesmo é da gratuitidade geral ao logro total.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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