O que andamos a fazer do nosso tempo e dos nossos afectos?

O lazer não é um luxo! É tão vital para o cérebro e para a sociedade, como a vitamina C é para o corpo! Contudo, nos dias que correm, o trabalho a mais e a pressão são até considerados símbolos de estatuto, numa espécie de novo esclavagismo!

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Nuno Ferreira Santos/Arquivo

O trabalho é hoje percepcionado como o núcleo da nossa identidade. A prová-lo está a quantidade de vezes em que somos questionados acerca da nossa profissão, nos mais variados contextos. Há estudos que indicam que o desemprego prolongado tem um impacto maior no bem-estar do que o divórcio ou a perda de um ente querido. Por isso, não podemos olhar para o trabalho apenas como uma forma de obter uma remuneração que nos permita (sobre)viver, porque ele também cumpre uma função identitária e social mais abrangente.

Confúcio escreveu: “Escolhe um trabalho de que gostes e não terás de trabalhar nem um dia da tua vida.” Será assim? O que se faz por gosto não cansa? Poderá ser visto como passatempo? Aldous Huxley no Admirável Mundo Novo dizia que “o segredo da felicidade e da virtude” está em “gostar daquilo que se é obrigado a fazer”. É mesmo? Ou lá se vão os graus de liberdade pelo cano? Não fará parte dos direitos humanos não restringir ou impossibilitar uma pessoa de se cumprir?

E por falar em liberdade: “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta) é uma expressão alemã que evoca a imagem da entrada de Auschwitz, o conhecido campo de concentração nazi durante a Segunda Guerra. Incrivelmente actual esta irónica frase: andamos a trabalhar, até morrer, em campos de concentração rígidos, promotores de desassossego colectivo e de infelicidade individual, numa combustão lenta, em lume brando.

Do equilíbrio entre a vida pessoal, familiar e profissional depende a nossa qualidade de vida. E a nossa cultura é um entrave a esse equilíbrio. Como diria uma querida colega e amiga há umas semanas: “O que andamos a fazer do nosso tempo e dos nossos afectos?” Quantos sentem que andam a descontar o tempo da pior maneira, encurralados num perpétuo movimento contínuo, que vai minando as suas forças, como a criptonite faz ao Super-Homem? O trabalho pode ser um bom detergente, quando nos ajuda a dar brilho a características individuais, que são menos visíveis noutros papéis que desempenhamos na nossa vida. Mas, pode também tornar-se um químico corrosivo conduzindo à exaustão física e emocional, tristeza, apatia, frustração, alienação, desesperança, desumanização, desmotivação e baixo autoconceito e realização profissional.

Em Portugal, pelo menos, uma em cada três pessoas trabalha mais de 40 horas semanais e quase metade considera insuficiente o tempo que tem disponível para se dedicar a si mesma, à família e amigos e realizar actividades de lazer. Não será coincidência que os países com as semanas de trabalho mais curtas tenham também mais voluntários e o maior capital social.

Ora o lazer não é um luxo! É tão vital para o cérebro e para a sociedade, como a vitamina C é para o corpo! Contudo, nos dias que correm, o trabalho a mais e a pressão são até considerados símbolos de estatuto, numa espécie de novo esclavagismo! Já dizia o Sérgio Godinho “que força é essa, amigo/ que te põe de bem com os outros/ e de mal contigo”?

De acordo com um contributo da Ordem dos Psicólogos Portugueses acerca do “custo do stress e dos problemas de saúde psicológica no trabalho em Portugal”, a dificuldade em equilibrar a vida pessoal, familiar e profissional, por ausência de fronteiras entre o trabalho e o lazer é um dos riscos psicossociais que tem ganho particular relevância, juntando-se a outros tais como o stress ocupacional, o assédio (moral e sexual), a violência no trabalho, a síndrome de burnout, a adição ao trabalho, a fadiga e carga mental no trabalho, assim como o trabalho emocional.

Os riscos psicossociais constituem, actualmente, uma das maiores ameaças à saúde física e mental dos trabalhadores, mas também ao bom funcionamento e produtividade das organizações. As situações de stresse ou burnout são responsáveis por 50% a 60% do absentismo laboral nas empresas europeias. Exigências laborais elevadas aumentam a probabilidade de diagnóstico de uma doença física em 35% e longas horas de trabalho aumentam a mortalidade em quase 20%. No entanto, a prevenção e a promoção da saúde psicológica e do bem-estar nas empresas portuguesas, além do impacto directo na saúde dos trabalhadores, pode também reduzir as perdas de produtividade, pelo menos em 30%, numa poupança estimada em mil milhões de euros por ano.

Robert Kennedy diria que “o produto interno bruto … mede tudo … excepto o que faz a vida valer a pena”. A vida não é ter e conseguir, mas sim ser e tornar-se. Quando morrermos não levaremos nada connosco, excepto o que somos. Importa, como tal, acautelar as pessoas em que nos vamos tornando. Conhece alguém, à face da Terra que, no seu leito de morte, tenha pensado ou verbalizado: “Ai, se eu tivesse trabalhado mais horas”? É um remorso que parece não ficar.

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