A legalização do aborto é mais do que o direito aos nossos corpos

O aborto ilegal não cria vida, põe a vida de quem tem útero e dos seus futuros filhos em risco. O aborto ilegal não previne abortos, previne abortos seguros. Ao penalizarmos o aborto estamos a abrir a possibilidade de alguém com útero falecer.

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Reuters/SHELBY TAUBER

Ninguém ficou indiferente quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos anulou o direito constitucional ao aborto. Muitas pessoas partilharam cartazes e conteúdos nas redes sociais com a frase “o meu corpo, a minha escolha.”

Há quem veja a despenalização da interrupção voluntária da gravidez como uma histeria conjunta de quem tem útero porque quer a possibilidade de fazer o que lhes der “na real gana”. Contudo, não é sobre isso que se trata. Trata-se do direito à vida. Como? Passo a explicar.

Porque é que há quem faça um aborto? Porque é que, mesmo quando é penalizado, há quem viaje a outro país para o fazer? Ou quem se socorra de cruzetas, aspiradores ou agulhas de crochet?

Nunca conheci alguém que tenha abortado de ânimo leve. É um trauma que estas pessoas levam consigo ao longo das suas vidas. Uma vez, uma mulher que passou por esse procedimento disse-me que ela não tinha forma de escapar à culpa que sente: é a culpa por o ter feito, ou a culpa de ter um bebé e não poder dar-lhe tudo o que precisa. Viver constantemente com culpa é horrível.

As pessoas que vêem no aborto a sua única decisão têm razões muito fortes para isso, desde parceiros abusivos que põem em risco as suas vidas a falta de possibilidades, entre outras que são íntimas e só têm de ser partilhadas se a pessoa quiser. Contudo, legal ou ilegal, vão arranjar forma de o fazer. Por isso é que há quem se sujeite a métodos caseiros e tão violentos que têm impactos ainda maiores do que a pesada memória deste evento: a impossibilidade de engravidar outra vez por terem magoado o útero, ou a sua morte. Estas pessoas merecem isso?

O que todos merecemos depois de um evento traumático é respeito, compaixão, tratamento, e tentar seguir com a nossa vida da melhor forma possível. Não precisamos de julgamento, de danos permanentes no corpo ou de morrer.

Gostava que toda a gente percebesse isto: o aborto ilegal não cria vida, põe a vida de quem tem útero e dos seus futuros filhos em risco. O aborto ilegal não previne abortos, previne abortos seguros. Ao penalizarmos o aborto estamos a abrir a possibilidade de alguém com útero falecer. É para aí que queremos caminhar, como sociedade?

Há a crença de que a penalização do aborto salva vidas. Não. Põe em risco exactamente as vidas que podíamos ter salvo. Não é por o aborto ser despenalizado que será a opção de todas as pessoas que engravidam sem planearem. Levar a gravidez até ao fim é válido e interrompê-la também.

Outra a crença é que, quem aborta, não leva o ser mãe ou pai a sério. Pelo contrário, acho que ao tomarem esta decisão mostram uma grande consciência desse compromisso.

Talvez, num mundo ideal, uma pessoa não teria de passar por este processo doloroso. Infelizmente não vivemos nesse mundo ideal. Aqui há guerras, há violações, há doenças e más formações de fetos. Nós nem conseguimos inventar ainda um sistema económico que não pusesse em risco o nosso planeta.

Mas, falando num “mundo ideal”, vamos falar de quem não quer abortar mas fá-lo por incapacidades económicas e sociais. Se, como sociedade, não queremos que alguém se encontre nessa situação, devíamos implementar uma série de medidas que até os Estados Unidos têm dificuldades em implementar, como um sistema de saúde e de educação gratuito, educação sexual, apoios a quem estude, igualdade salarial e de licenças e um sistema de justiça eficaz contra abusadores.

Por isso é que esta luta por um aborto legal e seguro é muito mais do que fazer aquilo que se quer com o nosso corpo. É uma luta pela sobrevivência de todas as pessoas que têm útero.

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