Tirar uma criança do lixo não basta

É, sobretudo, uma birra contra a valorização dos laços biológicos acima dos interesses das crianças, como se o ADN, só por si, colmatasse tudo o resto.

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@designer.sandraf

Ana,

Esta birra é uma birra daquelas em que nos atiramos para o chão e batemos com as mãos e os pés, indiferentes ao que os outros pensam de nós.

É uma birra contra a forma como o nosso sistema judicial continua a tratar as crianças, depois de tudo o que a ciência (já para não falar no coração) nos diz sobre a importância dos vínculos afectivos precoces, depois de mil e uma acções de formação a magistrados sobre os direitos das crianças. Não é tomar o todo pela parte, mas a parte ainda é pequena demais, e como deve ficar frustrada quando as suas decisões são revogadas por outras tão cruéis. É, sobretudo, uma birra contra a valorização dos laços biológicos acima dos interesses das crianças, como se o ADN, só por si, colmatasse tudo o resto.

Quase em simultâneo com a tragédia da pequenina Jéssica — não há palavras para descrever o horror do que ali se passou —, chegou a decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre o bebé do Ecoponto. Ana, lembras-te do recém-nascido que uma mulher sem-abrigo, em Novembro de 2019, deitou ao lixo e que só por milagre foi encontrado com vida? Sim, podes não acreditar, mas é o futuro dessa criança, agora com quase três anos, que continua em banho-maria. Ou pior.

Na altura quis imaginar que perante uma violência tão grande — apanhada em flagrante, ainda por cima — o caso se decidiria em semanas, e que pelo menos este bebé teria a oportunidade de ser rapidamente adoptado por pais capazes de o ajudar a recuperar da mágoa original que, ninguém duvide, marca para sempre.

Quando soube que na Justiça se “debatia” se a família da mãe tinha condições para ficar com o bebé, comecei a sentir arrepios. O bebé na família da mãe?! A que a mãe saída da prisão teria obviamente acesso? A vítima entregue ao homicida? Pelos vistos foi salva, não pela Justiça, mas pela família que concluiu que afinal não tinha condições para a criar (haja alguém com bom senso).

Depois apareceu um pai biológico. Que aparentemente desconhecia que a mulher/namorada/encontro ocasional estava grávida, só soube do nascimento e da tragédia que se lhe seguiu pelos jornais. Mas agora “deseja-o” acima de tudo, e litiga na Justiça, que ainda não lhe permitiu conhecê-lo. Segundo o PÚBLICO, em Abril de 2021 perfilhou a criança, na sequência de um teste de paternidade.

A decisão da Primeira Instância e da Relação de Lisboa, tinha concluído que a criança merecia ser adoptada, mas o Supremo Tribunal de Justiça “veio dar razão às pretensões do pai biológico”. Pai? Ser pai é ter um teste de paternidade positivo?

Ana, é extraordinária a esquizofrenia da nossa sociedade, os dadores de esperma são denominados “dadores”, e não têm quaisquer direitos sobre as crianças que procriam. A lei não lhes chama “pai”, nem permite o uso do termo. Mas, paralelamente, um tribunal superior, sobrepõe o “desejo” de um pai, que “gosta da criança, apesar de não a conhecer fisicamente” (?!), e decide que: “Antes de ter sido dada uma oportunidade razoável ao estabelecimento dos vínculos afectivos próprios da filiação entre a criança e o seu pai biológico, não pode o direito fundamental da criança ao conhecimento e ao contacto com o seu pai biológico ser sacrificado.”

Ana, o que é uma “oportunidade razoável”? Quantos anos para fazer o “teste do algodão”? E se correr mal? Põe-se um penso rápido?

Mas espera, a decisão afirma ainda que “não estão reunidas as condições para que criança seja entregue ao pai biológico”, para dizer logo de seguida que, no entanto, também não estão reunidas as condições para que se exclua. Ou seja, vamos fazer uma experiência. Se não funcionar, logo se pensa no passo seguinte, como se a criança estivesse congelada no tempo.

Enquanto isto, a criança está entregue a uma família de acolhimento que, rezamos aos santinhos, tenha criado com ela laços profundos. Os bebés precisam desses laços profundos para não morrerem por dentro, não é uma questão de cama e roupa lavada. Mas será que é possível dar a uma criança aquilo que ela realmente precisa — sentir que a amamos acima de tudo — quando nos põem prazos, quando nos dizem que é só durante um bocadinho, e o dia-a-dia é um sobressalto constante, hoje vai para adopção, amanhã talvez, mas afinal agora não e, por favor, abram lá espaço para a entrada de um novo personagem. Sabe-se lá se amanhã não é a mãe homicida que alguém decide que, afinal, tem direito a uma segunda oportunidade.

Ana, há pessoas extraordinárias, muito melhores do que eu, que seria completamente incapaz de ver um bebé meu (sim, claro, mesmo que não fosse biologicamente meu) metido nestes sarilhos, mas não é da dor dos adultos de que falamos, mas do dano grave provocado a uma criança, com o selo de um tribunal. E é isso que, infelizmente, uma instância superior de Justiça parece não conseguir ver.


Querida mãe,

Estou totalmente chocada por saber que essa criança, que é apenas um exemplo daquilo que acontece a tantas outras, continua à espera de uma solução definitiva que lhe permita a infância que merece, mas, também, que lhe garanta (e isto está cientificamente fundamentado), uma maior hipótese de um futuro melhor. Choca-me, igualmente, a facilidade com que “arrumei” esse assunto quando deixou de ser falado nos meios de comunicação. É sempre horrível perceber como somos tão rápidos a esquecer e a continuar com a nossa vida.

Concordo com tudo o que escreve, mas há dois pontos que me parece que merecem ser explorados. O primeiro, acerca das famílias de acolhimento, mas acho que merecem uma birra à parte. O segundo, em relação ao pai biológico. Não li o processo, mas parece-me possível que um homem seja surpreendido pelo conhecimento de um filho e que, legitimamente, queira lutar por ele.

No entanto, a justiça – para o ser – terá de ser muito rápida a perceber se essa pessoa tem, ou não, condições para dar à criança não só um tecto, mas tudo o que é necessário para que aquela criança – que já sofreu tanto – tenha o melhor recomeço possível. E é aí que entra o superior interesse da criança. Superior aos desejos do pai biológico ou da tristeza dos avós, ou da própria mãe.

A partir do momento em que assumimos, como sociedade, que as crianças não são coisas, mas gente com direitos próprios, é nela e só nela que devemos pensar.

Vá-me dando notícias.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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