Habitação: direito fundamental?

Mas, afinal, quem é que tem meio milhão de euros para poder dar-se ao luxo de viver em Lisboa, Oeiras e Cascais? Quem tem, pelo menos, 60 mil euros para poder pagar os obrigatórios 10% (e se forem 10%) mais o malfadado IMT?

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MOHD AZRIN/Unsplash

Comecemos por alguns números. Se procurarmos comprar um apartamento T3, com pelo menos 100 metros quadrados e lugar de garagem, até 300 mil euros, estas são as casas que vamos encontrar: zero em Lisboa; zero em Oeiras; uma ou duas em Cascais. O mesmo cenário repete-se, talvez com mais algumas (poucas) casas, no resto da Grande Lisboa. Só quando começamos a ir para Mafra, Sesimbra (a cerca 40 quilómetros de Lisboa) é que começamos a encontrar mais algumas alternativas. Conclusão: ou somos ricos e podemos viver em Lisboa, Oeiras, Cascais, ou somos simplesmente classe média (para as estatísticas portuguesas, até classe média alta) e somos obrigados a viver longe. E mesmo a essa distância, continuamos a ter que pagar uma fortuna (e arcar com gasolina, portagens) por algo que deveria ser absolutamente normal: um lugar digno para viver.

Como é que, num país em que o ordenado médio é 1.361 euros (sendo, na Grande Lisboa, cerca de 1500 euros) podemos viver tal cenário? Mas, afinal, quem é que tem meio milhão de euros para poder dar-se ao luxo de viver em Lisboa, Oeiras e Cascais? Quem tem, pelo menos, 60 mil euros para poder pagar os obrigatórios 10% (e se forem 10%) mais o malfadado IMT? Das duas, uma: ou as estatísticas estão erradas e somos um país muito mais rico do que os números revelam; ou vivemos num país em que pura e simplesmente é negado aos cidadãos um dos seus direitos fundamentais: o direito à habitação.

A verdade é que as casas continuam a vender-se. A verdade é que não se vêem grandes sobressaltos cívicos a propósito deste tema. Alguém se recorda de uma enorme manifestação nas ruas sobre isto? Alguém se recorda de este assunto ter sido tema central nas últimas legislativas?

Não há verdadeira democracia sem o respeito dos direitos fundamentais. Não há verdadeira democracia sem democracia social, económica e cultural. Entre vistos gold e alojamento local desgovernados, entre falta de investimento e de verdadeiras políticas públicas, o mercado da habitação em Portugal ilustra a nossa perene incapacidade em planear, em prever, em acautelar, em pensar. O importante era que entrasse dinheiro a rodos e que nos inebriássemos todos na miragem de um país e cidades em crescimento e rejuvenescimento. Que esse crescimento se fizesse à custa de quem ali vivia e quem ali podia viver, pouco importa. Resolve-se depois. E, com isso, toda uma geração — a minha — se vê expurgada de um dos seus direitos fundamentais. Mas que importa. O mundo é o que é. Sonhar outra realidade, lutar por ela, ousar “virar a mesa”... isso parece não ser particularmente premente. Aqui continuamos… formigas no carreiro.

É urgente fazer alguma coisa. Não podemos continuar a penhorar a vida dos jovens deste país como se de nada se tratasse. Este governo parece já ter desistido da geração dos que têm agora 30 e tal anos. Apesar de encher a boca quotidianamente com a “geração mais qualificada de sempre”. A verdade é que à geração que já viveu sempre em democracia (filha de Abril, portanto) o que há para oferecer é uma triste imagem do que Abril ousava: salários baixos e espremidos por uma carga fiscal absolutamente estúpida; impossibilidade de ter casa própria ou tê-la com o resto da vida penhorada; saúde pública em falência (principalmente se vivermos na Grande Lisboa).

Uma grande fatia do meu ordenado vai-se em IRS (e eu acredito na redistribuição do rendimento) e em Segurança Social (e eu acredito no pacto intergeracional), mas que recebo por isso? Não tenho médico de família, não consigo comprar/arrendar casa a custo justo, tenho que pagar para passar a ponte para a margem Sul. É muito difícil viver em Portugal sem ser rico ou sem nos conformarmos. Mas qualquer desses caminhos é a traição do sonho democrático: o perpetuar das desigualdades e da fatalidade.

Talvez por tudo isto, não seja estranho que as pessoas se voltem cada vez mais para as propostas liberais ou para soluções simplistas. Porque, de facto, é preciso libertar o país e é preciso mudar. Mas não creio que seja libertá-lo com base no credo neoliberal ou no populismo. É preciso, sim, libertar Portugal mas com base no combate às desigualdades: regule-se o mercado do arrendamento (tabelando equilibradamente as rendas); regule-se o mercado imobiliário (acabe-se com a especulação, reveja-se a carga tributária,...); reduza-se a carga fiscal sobre a classe média. Deixem que quem quer viver honestamente do seu trabalho possa viver e sonhar. Não nos obriguem ou a emigrar ou a desistir, caindo no conformismo que é a miséria nacional. Temos que ser mais livres, também economicamente, para haver verdadeira democracia, para haver um Portugal melhor!

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