Um espectáculo que em nada contribui para valorizar as pessoas com deficiência

As “Variedades Taurinas” com pessoas com acondroplasia reforça imagens estereotipadas e estigmatizantes, evocando a figura do “bobo da corte” dos tempos medievais, que julgávamos já definitivamente ultrapassada.

A recente realização de um espetáculo de “Variedades Taurinas” na Benedita, com a participação de um grupo espanhol de pessoas com acondroplasia (o grupo “Diversiones en el Ruedo”), tem suscitado aceso debate, com argumentos esgrimidos a favor e contra, a que a comunicação social tem procurado dar eco. Assumo, desde já, neste debate uma posição claramente desfavorável. Com efeito, considero que este tipo de espetáculo, ao contrário do que alguns afirmam, em nada contribui para valorizar socialmente as pessoas com deficiência em geral, e aquelas que vivem com esta condição física, em particular. Antes reforça imagens estereotipadas e estigmatizantes, evocando a figura do “bobo da corte” dos tempos medievais, que julgávamos já definitivamente ultrapassada.

Também preocupado com a realização destes espetáculos em Espanha, o Comité da ONU dos Direitos das Pessoas com Deficiência recomendou, em 2019, que fossem desenvolvidas ações de sensibilização que promovessem perceções positivas sobre este grupo, sublinhando que estes eventos têm o efeito inverso.

Há quem vislumbre nestas iniciativas uma oportunidade de concretização do direito à participação na vida cultural, recreação, lazer e desporto, consagrado no artigo 30.º da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), afirmando que a tauromaquia é uma atividade cultural reconhecida e o propósito do espetáculo o entretenimento do público. Outros (ou os mesmos) relembram ainda o direito ao trabalho e emprego, igualmente previsto no artigo 27.º do referido tratado, argumentando tratar-se de um conjunto de “artistas” que escolhem “livremente” a sua ocupação, que detêm carteira profissional e são remunerados pela atividade que desenvolvem.

A uns e outros direi apenas que qualquer artigo da CDPD deverá sempre ser interpretado à luz dos princípios gerais que a Convenção estabelece no seu artigo 3.º, o primeiro dos quais é o do respeito pela dignidade inerente das pessoas com deficiência. Ora este princípio não se coaduna com a exposição e objetificação que um espetáculo desta natureza opera sobre corpos que vivem com acondroplasia. Porque é a exploração da característica específica desses corpos que torna “cómicas” as atuações daqueles artistas.

Sobre a escolha “livre” da profissão, muito se poderia também dizer, mas parece-me suficiente recordar o velho axioma sociológico de que, se cada um de nós é obreiro/a da sua própria história, essa construção acontece sempre em condições que não são da nossa livre escolha, antes nos são estruturalmente impostas. E sabemos muito bem como historicamente as pessoas com deficiência têm sido alvo de preconceito, desvalorização e discriminação, barreiras que ainda hoje lhes cerram portas e impedem uma plena cidadania.

Os dados falam por si. No relatório Pessoas com Deficiência em Portugal - Indicadores de direitos humanos 2021, uma publicação anual do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos do ISCSP-Universidade de Lisboa, o fosso entre pessoas com e sem deficiência na sociedade portuguesa permanece crítico. Senão vejamos: em 2020, a disparidade na taxa de emprego de pessoas com e sem deficiência situou-se nos 18,2%; no mesmo ano, nas administrações públicas (central, regional e local) havia apenas 2,6% de trabalhadores e trabalhadoras com algum tipo de incapacidade; já no setor privado, dados de 2019 indicavam que os recursos humanos das empresas com mais de dez colaboradores/as não iam além dos 0,58%. As mesmas desigualdades evidenciavam-se noutras áreas: na educação, onde de um universo de 378.300 estudantes a frequentar o ensino superior, apenas 2582 tinham deficiência (2020/21); ou no risco de pobreza e exclusão social, que em 2020 sofria um agravamento de 12% entre agregados de pessoas com deficiência e de cerca de 50% no caso das pessoas com deficiências mais graves.

Numa sociedade que se quer democrática, plural e respeitadora de direitos humanos, verificar a persistência destas desigualdades não nos pode deixar indiferentes. E é neste ponto que, penso, todos estamos de acordo: precisamos de mais ações, iniciativas, e recursos que promovam a inclusão e cidadania plena de todas as pessoas com deficiência. Mas precisamos, sobretudo, que a sociedade no seu conjunto se mobilize neste objetivo comum. Sem paternalismos, mas também sem ambiguidades, com a responsabilidade social e cívica que a cada um convoca para a construção de uma sociedade que queremos mais inclusiva para todos nós.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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