Carta aberta a Pacheco Pereira

Quem clama como sendo hipocrisia política não valorizar esta guerra como sendo única, apagando todas outras, hipocritamente esconde-se do espelho da sobrevalorização mediática que desta é feita até à náusea


Ao colunista Pacheco Pereira

A sua colaboração deste sábado no PÚBLICO é, na verdade, uma provocação. Assim assumida, travestindo-se de “totó” para ver se percebe o que tão bem percebeu, como o texto bem demonstra, a contrario sensu.

Para começar, um pouco de fair play. Como muito bem sabe, a sua provocação parece um desafio para uma luta de galos, em que o desafio é na “capoeira” do desafiador e o desafiado tem o esporão entrapado, as asas cortadas, o bico preso por elástico… e o árbitro é “da casa”. E se são mais do que muitas as provocações, explícitas umas, embora capciosas como a sua, ou eufemistizadas outras, pouca é a possibilidade (ou a vantagem) de lhes tentar sequer responder. Mas… vamos lá.

É verdade que as guerras não são todas iguais, que nada do que se passou no mundo é igual ao que se passa nos dias de hoje, o que não quer dizer que a luta pela Paz não possa ser sempre a mesma, embora devendo ter maneiras de se manifestar adequadas às escaladas e às formas que tomam as guerras de hoje.

Esta guerra na Ucrânia, pelas condições que a antecederam, como foi provocada, pela campanha de mediatização e manipulação que motivou e pelas sanções que desencadeou ao agressor (mediatização e sanções bem diferentes das de muitas outras guerras de ontem e também de hoje) é diferente e igual a todas as outras, pelo sofrimento imensurável de todas, pela luta pela Paz que exige e justifica.

Quem clama como sendo hipocrisia política não valorizar esta guerra como sendo única, apagando todas outras, hipocritamente esconde-se do espelho da sobrevalorização mediática que desta é feita até à náusea.

É por não se abstrair desta guerra e da sobrevalorização que lhe é dada e do despudorado aproveitamento difícil de escamotear que dela se faz, que se torna mais premente, mais exigente, mais necessariamente mobilizadora, a luta pela Paz, não deixando de começar por condenar a concreta agressão. Pelo que se recusa a ardilosa denúncia de intenção que se pretende colar às manifestações contra a guerra em concreto.

O Pacheco Pereira leva o seu exercício de avaliação, julgamento e condenação de intenções de outros, baseado em códigos de ética que o seu exercício em si mesmo desmente, baseando-se em factos passados, colando-os à prática política de um partido político, alvo sempre preferencial destes processos inquisitoriais.

E fá-lo com afirmações de homotéticas argumentações que não comprova. Mas que afirma existirem… e impressionarem-no! Também lhe diria que muito me impressiona a repetição cartilhada dos mesmos factos e argumentos, sempre os mesmos, quase confissão que, afinal, poucos têm para mostrar. Fraqueza de quantidade que compensam com a dita repetição até à exaustão (para que me dispenso de fazer comparações… inevitáveis!).

Na minha opinião, e não peço autorização para a ter nem autorizo que a deturpem, há mesmo necessidade, diria vital, de uma “nova ordem mundial” que substitua a apregoada e mal instalada globalização, que se transformou numa unilateralidade imperialista que veio comprovar estar o capitalismo na sua fase extrema… e extremamente perigosa para a humanidade, para a sua sobrevivência. E dessa opinião resulta a preocupação cidadã de contribuir, com a pouca força que ainda tenho, para a luta pela Paz.

Recuso conceder-lhe autoridade de qualquer tipo para confundir esta minha opinião etiquetando-a de correspondente ou coincidente com ideias de outros com objectivos ou “argumentos puramente [!?] geopolíticos”.

Sou (e não peço licença a ninguém para o ser) marxista-leninista e, como tal, militante desse partido-alvo de todos os ataques e omissões. Sempre considerei coerente com essa opção e postura ideológica a consideração da Paz (repare que troco as aspas da sua “paz” pelo “P” maiúsculo da minha Paz) como necessidade humana.

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Kharkiv, Ucrânia, 26/6/2022 AFP PHOTO/ PATRICIA DE MELO MOREIRA

Sinto, por isso, orgulho em poder justificar a minha opção com factos como o decreto n.º1 do primeiro Estado que se assumiu como socialista (decreto de 1917 que retira esse Estado da I Guerra Mundial, e define, como regra para as relações internacionais, a coexistência pacífica), e no mesmo sentido de coerência dei todo o apoio e contributo de que era capaz à tentativa do final dos anos 60/década de 70 do século XX de instauração dessa regra na “ordem mundial”; e por isso mesmo tive a oportunidade de saudar a Acta de Helsínquia de 1975 como acto de grande importância mundial e humanitária.

Para mim, a coerência do ser humano (seja marxista-leninista ou não) faz com que esteja (e ao lado dos que estão) pela Paz.

Não quero tornar esta carta aberta demasiado longa.

Procuro, ainda, contrariar a sua afirmação de “comparações [que seriam] inevitáveis… poque verdadeiras”. Antes de mais, parece-me abusivo considerar verdadeiro – e fazer assim ter de ser aceite por outros – o que, para cada um de nós todos, é verdade; mas trata-se de pecadilho usado e abusado por quem tem uma verdade, e só uma, no bolso. Depois essas comparações são abusivas porque comparam situações e argumentos que podem ter a mesma aparência mas que têm objectivos e procuram finalidades diametralmente opostas.

E, para terminar, não resisto ao contar dois episódios.

Um, que muito tenho recordado nestes últimos meses. Na sequência da luta no CPPC [Conselho Português para a Paz e Cooperação], fiz parte de grupo de portugueses que, no final da década de 80, ainda viva a esperança de se conseguir instalar a coexistência pacífica, desceu o Dniepre de Kiev a Odessa, num barco com grupos de outros “nacionais do Ocidente” pela Paz e de igual número de soviéticos como anfitriões, iniciativa que repetia idêntica iniciativa realizada para descer o Mississipi.

Outro, de natureza mais pessoal, que não sei se se recordará. No mandato do Parlamento Europeu de 1994-99, o meu segundo e em que fui eleito questor, tarefa que levei a sério (e com seriedade), num dia de plenário em que o avião nos transportara de Lisboa, depois de ter assegurado o bom funcionamento do serviço de transporte dos deputados no trajecto aeroporto-hotel-hemiciclo, entrei no último carro onde já estava Pacheco Pereira; cumprimentámo-nos e conversámos durante o percurso, e não me esqueço que me contou conhecer-me desde a animação de um colóquio sobre economia no Instituto Superior Técnico, em que a minha intervenção o ajudara a entender coisas da economia; foi a nossa primeira conversa, esta é a segunda, e espero ter-me feito entender.

Fica a resposta – que é mais um desabafo – ao desafio.

Cumprimentos do Sérgio Ribeiro

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