Pela medida grande

“Que pena ter coleccionado na caderneta invisível dos prazeres tantas histórias acumuladas como os quilos”.

Foto
"Todos caímos na tentação de recear que não gostem de nós" Maria Inês

Lembro-me da primeira vez em que ouvi um “que pena ser…”. Ou então lembro-me porque dessa vez respondi. Estávamos numa redacção cheia, e uma jornalista olhou para um dos ecrãs onde um homem bonito falava e disse quase em jeito de lamento: “Que pena ele não gostar de mulheres.” Foi um pensamento em voz alta daqueles que ouvimos demasiadas vezes sem nos darmos conta do que realmente querem dizer. Acho que lhe respondi com fúria, rindo-me pelo meio: “Achas que se gostasse, era contigo que ficava?”

Passamos a vida com a pena às costas: tem uma cara tão bonita, que pena ser tão pequenina; que pena ser pobre; que pena não gostar de música boa; que pena trabalhar num call center; que pena ser careca; que pena ter pêlos. São tantas as penas, que me dou conta de que estupidamente passamos meia vida entre elas para nos absolvermos a nós próprios de qualquer coisa empurrando a culpa para os outros.

Há dias, publiquei uma fotografia minha de há 12 anos, e logo os ecos me chegaram em força: só foi há 12 anos? Que pena estar tão diferente!

Eu quase tenho pena de estar diferente. Cinquenta anos, várias desilusões que, felizmente, não são lápides no cemitério, mas centenas de garrafas de bom vinho bebidas, milhares de brindes aos amores e à saúde, comidas que me trouxeram o desassossego de estar viva e querer voltar aonde fui feliz. Cinquenta anos. Cara larga, quilos distribuídos como se fossem pratos saboreados, o prazer colado ao céu-da-boca, as costas que se expandiram para dizer à vida que aguento. Que pena estar diferente. Que pena ter coleccionado na caderneta invisível dos prazeres tantas histórias acumuladas como os quilos. Realmente, tenho pena de que as camisas me apertem, mas por algum motivo se inventaram as túnicas…

Conheci em tempos um rapaz que recorrentemente voltava a dormir com a mesma rapariga. Não gostar dela parecia aqui um pormenor, até porque ela lhe dizia sempre que sim (chamemos-lhe paixão para não elucubrar demasiado), e eu ali com uma pontinha de ciúme adolescente a querer saber porquê insistir na recaída inconsequente dele: “Mas por que fazes isso?” A resposta vinha simples sem restos de prazer no céu-da-boca: “Porque ela é magrinha.” Então eu olhava para o diâmetro das minhas pernas (que ainda não tinham segurado as traves dos banquetes por onde passei) e pensava: que pena ele ser assim, que pena não ver mais fundo, que pena não conjugar o verbo amar independentemente da forma.

A reflexão é boa, mas assim se percebe que todos caímos na tentação de recear que não gostem de nós por isto ou aquilo. Um small ou um large. Que pena ser por tão pouco, mesmo que a medida seja grande.

Antes de eu ter mais quilos e menos skills – como se diz agora –, eu sofria com muitas coisas. Tinha herdado uma discriminação da infância que só assimilei mais tarde. Eu já abria os olhos em miúda e via bem, mas não tinha nome para aquilo que era somente a perigosa tentação de distinguirmos pessoas: ricas, pobres, feias, bonitas, com mais ou menos dentes, ouro ou latão. Só adulta me apercebi de que o estatuto gera exigências que nada têm que ver com os filmes escolhidos ou os livros que li. O estatuto é uma carapaça que, com um beliscão ou a ironia de Deus, desaparece em poucos segundos, passando os ricos e famosos a trastes sem amigos. Que pena já não irmos àquelas festas – dirão alguns.

Assim vamos de pena em pena. Lamentando o que fomos, lamentando o que somos, o que temos a mais e de menos.

Há 12 anos, eu era o que ainda sou. A cara, a barriga e as pernas não me retiram esta gratidão toda à vida, antes pelo contrário: está aqui tudo para confirmar que vivi – e pela medida grande.

Que pena quem não enxerga que o que vem de nós é muito superior ao que de nós se veste.

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