Os pensamentos, tal como a música, não pedem licença para entrar

A rapariga de cabelo comprido e escuro tinha uma voz estridente, que a fez perder a vontade mal ela abriu a boca para proferir as primeiras palavras. Parecera-lhe tão nova e tola, a vangloriar-se da coragem de ter feito uma longa caminhada à noite para ali chegar, como se isso fosse verdadeiramente perigoso.

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O sabor que lhe ficava na boca após uma dessas aventuras amargava-lhe também o espírito. Não sabe, por isso, porque o fazia. Seria de esperar que o seu repetido comportamento, embora espaçado, se tornasse desimportante e que não lhe soasse a inédito de cada vez. Para quê atormentar-se com uma questão física e de somenos?

De um ponto de vista racional, sentia-se estúpida por condenar as necessidades imediatas do corpo. Não prejudicava ninguém. Ademais, os encontros não eram, regra geral, particularmente bons. E este também não o fora. A rapariga de cabelo comprido e escuro tinha uma voz estridente, que a fez perder a vontade mal ela abriu a boca para proferir as primeiras palavras. Parecera-lhe tão nova e tola, a vangloriar-se da coragem de ter feito uma longa caminhada à noite para ali chegar, como se isso fosse verdadeiramente perigoso. Todos estavam cientes dos perigos do sol para o corpo humano, não da lua.

Falava e agitava os pés irrequietos dentro de uns ténis coloridos e, assim, presencialmente, não parecia tão nova nem tão bonita como nas fotografias. Contudo, já ali estava. Não podia voltar atrás; mandá-la embora seria ofensivo para a rapariga. O pior foi o que sucedeu a seguir, quando, ao fim de uns beijos sensaborões sobre a cama, lhe tirou a blusa. Pôs-se, inadvertidamente, a pensar nos chefes e na máquina e no problema que atravessava o mundo por aqueles dias. Ali estava, perante um par de seios jovens e cheios. Nem uma só vez lhe ocorreu a traição à namorada, nem mesmo enquanto abocanhava o sexo da rapariga, fazendo uso da técnica tantas vezes praticada com usufruto, mas que agora nada a fazia sentir. Uma apatia completa, sem gozo nenhum. Será que por ter estado tanto tempo sem tocar em alguém deixara de ser capaz de sentir prazer?

Desabituara-se dos cheiros, da pele contra pele, dos sons, enfim, de tudo quanto a tornava animalesca. O cheiro do sexo da rapariga incomodava-a, e os gemidos ligeiros, que noutra época lhe seriam prazerosos de escutar, davam-lhe vontade de a mandar calar. Toda a situação lhe parecera maquinal e grotesca, nem sequer vagamente próxima da pornografia incitante, apenas uma coreografia bacoca, que demorou a findar devido à inexperiência da rapariga. Já sozinha no quarto, deixou-se tombar sobre a cama com os braços estirados acima da cabeça. Ocorreu-lhe que os pensamentos, tal como a música, não pedem licença para entrar.

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