Não faltam vozes para cantar este “país oceano”. O mar na música portuguesa

Dos Heróis do Mar aos Moonspell, de Anamar a Rui Veloso, o mar – desconhecido, simbólico, absoluto – está um pouco por todo o lado no pop-rock português. “Ele próprio carrega uma música. É preciso ouvi-lo.” Texto originalmente publicado em 2013, na revista Nau 21.

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Heróis do Mar DR

É o “mar salgado”, “das trevas”, que some galés, que Rui Veloso cantou. É o mar do País oceano, de Anamar, em que “as ondas todas são gente”. É o mar das Visões-ficções medonhas de António Variações: “Já vejo o mar a crescer/Onda gigante a varrer/Só vejo corpos a boiar.”

Ele, o mar, está um pouco por todo o lado no pop-rock, em sentido lato, português. Está na procura de uma identidade lusa dos Heróis do Mar e dos Madredeus. Nas “tormentas” dos Sete mares da Sétima Legião. Na Baía de Cascais, n’ A casa da praia e no navio que “ao passar” “fica o mar sempre igual” dos Delfins. Nos “magníficos dias atlânticos” dos Ban. Nos devaneios épicos, comuns no metal de todo o mundo, mas que neles surgem cheios de Portugal, dos Moonspell.

“Inspirados pela tradição portuguesa”, os Heróis do Mar, nascidos em 1981, encontraram no mar o “chão” da sua aventura”, diz o fundador Pedro Ayres Magalhães. Até então, o mar inspirava poucos artistas pop-rock, apesar de alguns episódios pontuais, como Epopeia (1969), da Filarmónica Fraude, disco de rock progressivo em torno dos Descobrimentos.

Na sua busca de uma portugalidade moderna, uma portugalidade pop, os Heróis do Mar tiveram a companhia da Sétima Legião, Anamar, Clube Naval e de outros projectos da editora Fundação Atlântica, que Ayres fundou em 1982 com Miguel Esteves Cardoso e outros crentes na pop portuguesa.

Os Heróis do Mar, “grupo de marinheiros” que trouxe para o pop-rock dos anos 1980 portugueses símbolos como a Cruz da Ordem de Cristo, não queriam fazer a apoteose da epopeia marítima portuguesa, afirma Ayres Magalhães. Interessavam-se mais pelo que iria no espírito dos embarcadiços, pelo que “seriam os sentimentos” de quem partia para o mar. “Não é na certeza que se desenvolvem as pessoas. Queríamos trazer essa metáfora para a vida moderna”, conta.

Embarcadiço é o nome de uma canção d’ Os Golpes, um dos projectos da Amor Fúria, editora discográfica fundada em 2007 que tem nos Heróis do Mar uma referência (Amor Fúria surge do nome da canção dos Heróis Amantes furiosos). Os Golpes, já extintos, reinventaram, à luz do rock, Tenho barcos, tenho remos, cantiga popular imortalizada por José Afonso. “É uma inevitabilidade que o mar esteja presente. Gosto de pensar que estou de costas para a Europa e de frente para o Oceano Atlântico”, revela Manuel Fúria, que esteve nos Golpes e fundou a Amor Fúria.

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Manuel Fúria Paulo Pimenta

Mesmo quando olha para o interior, para a “terra como o sítio de onde és”, Fúria fá-lo por “oposição ao mar”. “Há consciência da ausência do mar”, sublinha. “[O mar] É tão grande que atinge uma dimensão quase espiritual. Toca nos teus nervos mais sensíveis. É uma coisa tão física que fala de coisas espirituais, como a eternidade. É perigoso, é calmo, é tudo ao mesmo tempo.”

O absoluto entre nós

Ana Maria Alfacinha de Brito Monteiro tem tanto mar dentro de si e da sua música que assumiu o nome Anamar – nos palcos, nos discos, mas também no resto da vida (há quem lhe chame Ana, há quem lhe chame Anamar).

O que surgiu como uma sugestão de um sueco com quem partilhou uma banda (“O teu nome é muito grande, vou-te chamar Anamar”), no fim da adolescência, tornou-se um segundo nome para a lisboeta. “Temos esta condição incrível de o mar ser a nossa alma – em rigor, se calhar, é a nossa identidade”, defende.

Não se ficou pelo nome: canta o mar em diversos momentos da sua carreira a solo, que começou nos anos 1980. No álbum de estúdio que lançou em 2013, Anamar, estão versões de Barco negro (popularizado por Amália, com letra de David Mourão-Ferreira) e Sete mares, da Sétima Legião.

Para Anamar, é inevitável falar de mar quando se pensa ou canta sobre Portugal. “Nós somos gigantes, mesmo em termos físicos. Se contarmos com a plataforma continental que entra pelo mar adentro, somos enormes. Mas, mais do que a dimensão da área geográfica, vivemos voltados para o mar. À frente dele não tem mais nada que não o absoluto. Essa relação tão familiar com o absoluto faz parte de nós. Não sei quem nasceu primeiro, se foi o mar que nasceu em nós, se fomos nós que nascemos nele”, diz a cantora.

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Anamar Miguel Madeira

Este mar português, “que liga às raízes e faz navegar para longe”, é, para Anamar, mais do que referência simbólica. Fala dele com conhecimento de causa: é patrão da costa (pode navegar até 25 milhas da costa). “Sei o desafio que é estar no mar. É entregarmo-nos a um meio que não dominamos, que tem as suas regras, os seus princípios, que podemos estudar mas que têm uma margem de imprevisibilidade razoável”, nota.

É Anamar que canta “O meu país é o mar” em País oceano, com letra de Tiago Torres da Silva. “O mar pode ser o lugar de todas as quimeras, mas também pode ser o lugar de onde nunca partimos. Essa letra termina assim: ‘O barco que anda aos ésses/sem nunca sair do cais’”, aponta o letrista. “É um bocadinho o que andamos a fazer – o mundo em geral.” A crise presente é também “consequência disso”: metaforicamente, ir para o mar “seria ver o horizonte como um desafio e não como um obstáculo”.

O mar está presente em várias letras escritas por Tiago Torres da Silva. “Vivo em Lisboa. Tenho uma relação muito forte [com o oceano]. O mar é a metáfora maior do amor que existe no mundo: gostamos de estar perto, gostamos de entrar, mas não lhe perdemos o temor.”

As letras de Tiago com mar dentro “nascem um bocadinho de uma tradição poética que há em Portugal na qual o mar foi sempre importante”. “Desde o Camões que o mar é um dos protagonistas da poesia portuguesa e isso foi trazido para a música popular com muita força. Havia esse imaginário poético em que o mar é uma metáfora da saudade, da distância, da ligação ao desconhecido, da separação dos amores, do regresso dos amores. Isso é uma coisa que é tão antiga quanto a poesia portuguesa. Quando os poetas começaram a escrever para a música, levaram o mar. Tenho muito mar no que escrevo. O mar é ele próprio uma música: tem uma cadência, a ondulação.”

Touradas com tubarões

A tradição poética existia, os Heróis do Mar já tinham começado a revisitar o passado marítimo para marcar um lugar numa cena pop que desconfiava dos símbolos dos Descobrimentos (uma desconfiança que se devia à apropriação ideológica que deles tinha sido feita no Estado Novo), mas é em 1982 que a temática é vertida na sua plenitude para canções.

É nesse ano que Fausto Bordalo Dias, que nasceu em 1948 no Atlântico (a bordo do navio Pátria, que viajava de Portugal para Angola), inaugura a trilogia Lusitana Diáspora, com Por Este Rio Acima. Frequentemente colocado nas listas de melhores discos portugueses, o álbum, um colosso da música popular portuguesa, parte de Peregrinação (1614), relato de Fernão Mendes Pinto das expedições dos descobridores e conquistadores portugueses.

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Fausto Adelaide Carneiro

“Fausto assumiu esse tema como fulcral”, confirma Pedro Félix, que colaborou na produção da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, com direcção de Salwa Castelo-Branco.

Para o investigador do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa, Fausto é o “intérprete que está mais ligado a esse imaginário”, mas o mar está em muitos outros músicos mais ligados ao pop-rock – dos Xutos & Pontapés (“As ondas que te empurram/As vagas que te esmagam”, canta Tim em Remar, remar, single de 1984 da Fundação Atlântica) aos Sitiados (na festiva Vida de marinheiro, 1992).

O impacto de Por Este Rio Acima foi tal que levou Carlos Tê a adiar a concretização de uma “ideia muito antiga”: escrever canções sobre os Descobrimentos e o Império Português. A oportunidade perfeita surgiria uns oito anos depois, com uma encomenda da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. O Banco de Portugal patrocinou a empreitada dispensando o empregado Carlos Monteiro, isto é, Carlos Tê.

Durante um ano, o letrista inseparável de Rui Veloso mergulhou mais fundo na história portuguesa e das histórias que recolheu, em livros e na revista Oceanos, editada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Resultado: Auto da Pimenta, álbum de Rui Veloso de 1991. “O foco era sempre a perspectiva do marinheiro comum, o cabo raso. Era essa a perspectiva, que nunca está nos livros de História, a perspectiva do sobrevivente, do [Fernão] Veloso d’Os Lusíadas, daquele gajo que tenta desenrascar-se como pode”, explica Carlos Tê.

Das histórias que leu, Tê lembra-se de uma em particular. As calmarias – períodos, por vezes longos, em que a falta de vento impedia os barcos de prosseguirem viagem – faziam despertar a imaginação dos marinheiros: como passar o tempo no alto-mar? “Chegavam a fazer touradas com tubarões. É cinema puro, não se pode pôr numa canção, só com imagens.”

Ainda assim, a imagem foi parar a uma canção de Auto da Pimenta, Calmaria: “A mando do capitão fizemos procissão/Missa e novena cantada pescamos um tubarão/e depois de o cegar no convés com ele fizemos tourada/mas do vento de feição é que ninguém sabia de nada.”

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Rui Veloso Paulo Pimenta

Mar, saudade, amor

O alto-mar pode ser o lugar de uma “tempestade de vingança”, se o mar for uma metáfora para o amor – ou para a falta dele. Foi o que fizeram os Heróis do Mar em 1981, com a canção Mar alto, “metáfora de um desamor”, diz Pedro Ayres Magalhães. Cinco anos depois, no álbum Macau, Só no mar é já dona “de uma dimensão mística” (“Flutuar, flutuar no ar/A nadar, a nadar, a nadar no mar/Eu só quero subir, é subir/e subir e subir/Eu só quero é sentir, e sentir, e sentir/O Senhor”).

Noutro projecto, Pedro Ayres Magalhães levaria mais fundo a importância simbólica do oceano. O mar faz parte do triângulo que define os Madredeus, fundados no meio dos anos 1980 (tornar-se-iam uma das mais internacionais forças culturais portuguesas): “Em todas as canções existem o mar, a saudade e o amor.” Mar e saudade confundem-se: “O mar aparece como a distância a transcorrer entre duas pessoas que se estimam.”

Eis o mar na voz de Teresa Salgueiro (O mar, 1994): “Não é nenhum poema/o que vos vou dizer/Nem sei se vale a pena/tentar-vos descrever/o mar”. Mais à frente: “E fui envelhecendo/sem nunca o perceber”. Ei-lo, de novo, em A profecia atlântica (2008), já enquanto Madredeus & A Banda Cósmica (“Vivemos o futuro no presente/e navegamos nuns barcos de luz/Cruzamos os três continentes/azuis”), visão do Quinto Império na qual o mar é, diz Magalhães, “território de amor”.

Para Carlos Tê, “o mar, nos séculos XV e XVI, é o espaço sideral”, é o desconhecido, o que faz da expansão marítima portuguesa algo comparável à corrida espacial da segunda metade do século XX.

“É um bocadinho o nosso Evereste”, compara, por seu lado, Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell. Na discografia do grupo, o mar surge, por exemplo, nos temas Alma mater (“Breaking waves announce my bride/It is the only way the sea could sing/legends of lusitanian pride/He sings the words I cannot spring”), hino do metal nacional, Atlantic, Finisterra e no instrumental Mare Nostrum.

Durante muito tempo da história portuguesa, o mar era “escuridão”, diz Ribeiro. “Sabíamos que havia terra a oriente, mas ninguém sabia o que o mar encerrava. Esse sentimento de isolamento, de solidão, esse finis terrae influencia muito os Moonspell. É uma presença quase inevitável”, elabora. Habituados a percorrer o mundo para mostrar a sua música, sabem o que é viver sem mar. “Regressamos sempre a casa para ver a casa, também para ver o mar. Andamos por países que não têm essa bênção.”

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Fernando Ribeiro dos Moonspell Miguel Manso

Tiago Torres da Silva vê no mar um “óptimo amplificador das almas dos povos e a música é seguramente o lugar onde ele mais consegue ser amplificador porque ele próprio carrega uma música. É preciso ouvi-lo.”

“[O mar] Faz parte de nós, é a nossa imensidão e o nosso horizonte”, defende Anamar. “Às vezes, olho para este país e para o povo que somos e não me admira existirem tantas formas de estar e de ser-se português. É fácil quando estamos abraçados a um sonho perdermo-nos nas idiossincrasias das águas.”

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