Beira Interior: Estes vinhedos vão beber o que a altitude tem de melhor

Junto à fronteira, e rodeada pelas serras da Estrela, da Marofa e da Malcata, vai florescendo uma região vitivinícola com condições para alcançar cada vez mais reconhecimento. Dentro e fora de portas.

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Vinhas dos vinhos Beyra, de Rui Roboredo Madeira, em Vermiosa (Figueira de Castelo Rodrigo) Sergio Azenha

Rodolfo Queirós recebe-nos no Solar do Vinho da Beira Interior, edifício que consegue ser, ele próprio, testemunho da imagem que a região vitivinícola pretende passar para o exterior: um projecto alicerçado na tradição, sem abdicar de um toque de modernidade. O imóvel que alberga a sede da Comissão Vitivinícola Regional da Beira Interior (CVRBI), da qual Rodolfo Queirós é presidente, está localizado junto à muralha e à catedral da Guarda, bem no alto da cidade, fazendo eco da principal marca identitária dos vinhos da região: a altitude.

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Rodolfo Queirós, presidente da Comissão Vitivinícola Regional, destaca a altitude como "elemento diferenciador na qualidade dos vinhos" da Beira Interior. Sergio Azenha

“É um factor diferenciador na qualidade dos vinhos porque permite ter maturações [da uva] mais lentas. Enquanto em regiões próximas se começa a vindima em Agosto, aqui vindimamos em Outubro”, exalta o presidente da CVRBI.

O clima também ajuda. E até acaba por juntar uma peça preponderante ao puzzle. Ajuda a que a Beira Interior seja uma das regiões “com mais potencial” na área dos vinhos biológicos. “Como a humidade relativa é baixa, não há grandes problemas de doenças nas vinhas”, sustenta, assegurando que a produção de vinho biológico vai ganhando cada vez mais terreno na região que abrange três sub-regiões (Castelo Rodrigo, Pinhel e Cova da Beira) e uma indicação geográfica que se estende por 20 municípios.

Espalhar a imagem da região

“Tem um potencial enorme”, vaticina Rodolfo Queirós, sem esconder que há ainda muito trabalho para fazer, tanto mais porque “a Beira Interior começou mais tarde”, repara, aludindo aos exemplos dos vizinhos do Douro, Dão e Alentejo. Ainda assim, os ventos têm soprado de feição para a região vinícola instalada no interior Centro do país e que conta com cerca de 15 000 hectares de vinha. “A nossa região já vende cerca de 25% para exportação e estamos convictos de que iremos crescer este ano”, destaca o presidente do organismo que tem vindo a trabalhar para melhorar este e outros números.

“Queremos aumentar o número de vinhos certificados e tentar atrair novos produtores para a região”, nota, admitindo que também importa continuar a promover a marca vinhos da Beira Interior. A criação da Rota dos Vinhos da Beira Interior veio dar uma ajuda, juntamente com a abertura de uma loja física (no Solar do Vinho) e outra online dedicada aos produtores locais. O objectivo destas lojas passa por espalhar a imagem da região no país e lá fora”, argumenta Rodolfo Queirós.

É disso que a Beira Interior precisa, passar a ser conhecida. Tudo o resto já lá está, assegura José Almeida Garrett, líder daquela que é uma das principais adegas da região: a Almeida Garrett Wines. “A Beira Interior tem tradicionalmente vinhos muito interessantes, só fica atrás por ser menos conhecida”, destaca o representante da família descendente do escritor Almeida Garrett e que ali começou a produzir vinho em 1856 – é o produtor mais antigo da região. “Tem as castas autóctones que nos permitem ter vinhos diferentes, a par com outras castas nacionais e internacionais”, refere, recordando que foi o seu avô, há mais de 100 anos, quem trouxe as primeiras varas da casta Chardonnay para a região.

Actualmente, a Almeida Garrett Wines conta com 44 hectares de vinha no município da Covilhã (Cova da Beira) e tem vindo a apostar também no enoturismo – através da própria adega e também de uma unidade de alojamento –, ciente de que essa vertente tem um papel preponderante na afirmação e promoção da região. “E as coisas têm vindo a andar. No início, éramos poucos produtores engarrafadores na região – basicamente só nós e a Quinta do Cardo – e hoje em dia já temos muitos”, nota José Almeida Garrett.

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É nestas vinhas em Vermieira, concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, que nascem os vinhos Beyra, de Rui Roboredo Madeira. Sérgio Azenha

O chão que viu nascer o Beyra

Outro dos produtores que mais têm contribuído para a afirmação dos vinhos da Beira Interior é Rui Roboredo Madeira, que já parecia destinado a investir nas vinhas da Beira, não obstante ter começado pelo Douro. Estávamos na década de 1980 e Rui tinha vindo para a região de onde a sua família era originária para recuperar de um acidente de viação. Foi desafiado por um amigo a participar numa vindima na Vermiosa, em Figueira de Castelo Rodrigo, longe de imaginar que tal experiência lhe ia mudar a vida. “Ficou o bichinho e decidi ir para Enologia, em Vila Real, mas nunca mais me lembrei da Beira Interior”, recorda. Em 2010, a Beira Interior foi ao seu encontro. “Fui contactado pelo dono da adega da Vermiosa a dizer que queria vender a propriedade”, conta. Pensou, fez contas, pediu um empréstimo ao banco, e deu início à aventura do Beyra, precisamente no mesmo local onde, mais de 20 anos antes, tinha despertado para o mundo dos vinhos.

“O Beyra veio do zero”, faz questão de vincar, recordando os esforços e alterações que teve de começar a fazer, nas vinhas e na adega, para chegar aos vinhos que ambicionava. “Comecei a mudar a filosofia, inclusive as uvas. Tenho tido aqui um grande trabalho de experimentação”, conta, dando o exemplo da sua experiência com a Touriga Nacional, que apesar de ter bons créditos por aquelas bandas, está longe de o convencer. “É uma casta que pode ser um pouco um vintage da zona, nem todos os anos funciona bem”, avalia.

As experiências que tem feito questão de levar por diante na Vermiosa levam-no a confessar que a Síria, uma das duas castas (brancas) identitárias da região, também não está entre as suas uvas brancas favoritas – “é uma casta que perde acidez, que é fundamental nos brancos” –, contrariamente ao que acontece com a Fonte Cal. “Por mais que experimente, mudando a levedura, mudando a vinificação, esta casta da Beira Interior mantém sempre uma identidade muito grande. Vinhos muito encorpados, com uma grande estrutura”, exalta o produtor que, neste momento, já conta com 48,4 hectares de vinha na Beira Interior.

Rui Madeira é peremptório a afirmar o quanto acredita nesta região. “A Beira Interior tem um potencial enorme”, sublinha, antes de nos dar a conhecer os números que falam por si. “Em 2019, a denominação Douro representava 77% do meu negócio e a Beira 22%. Em 2021, a Beira subiu para 30% e Douro desceu para 69%”, testemunha o produtor que ambiciona, a médio e longo prazo, produzir “um milhão de garrafas na Beira Interior com um bom preço médio”.

Vinhas dos vinhos Beyra, de Rui Roboredo Madeira, em Vermiosa (Figueira de Castelo Rodrigo) Sergio Azenha
Adega dos vinhos Beyra, de Rui Roboredo Madeira, em Vermiosa (Figueira de Castelo Rodrigo) Sergio Azenha
Rui Roboredo Madeira, enólogo e fundador dos vinhos Beyra. Sergio Azenha
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Vinhas dos vinhos Beyra, de Rui Roboredo Madeira, em Vermiosa (Figueira de Castelo Rodrigo) Sergio Azenha

Ressuscitar castas ​“praticamente extintas”

Outro enólogo que está intimamente ligado à região da Beira Interior é Virgílio Loureiro, académico e grande especialista em vinhos. Nascido nas beiras – ainda que “do outro lado da serra, em Viseu” –, passou a ter relação directa com a Beira Interior a partir de 2000, quando foi desafiado a fazer os vinhos da Quinta dos Termos. “Uma aventura que continua a ser muito gratificante”, faz questão de vincar.

Virgílio Loureiro acredita piamente na singularidade dos vinhos da Beira Interior, marcada pela continentalidade, pela altitude e também pela diversidade de terroirs. “Vinifico uvas da Quinta dos Termos no chamado campo albicastrense e também em Pinhel, e a mesma casta chega a apresentar um mês de diferença de maturação entre um e outro”, exemplifica.

Fã confesso das castas identitárias da região – além da Síria e da Fonte Cal, tem também a tinta Rufete –, Virgílio Loureiro diz que até gostaria de “ressuscitar castas que estão praticamente extintas”. “Estou a lembrar-me da Folha de Figueira, do Casculho, uma série de castas que hoje praticamente ninguém conhece, mas que ainda aparecem nas vinhas velhas”, conta, argumentando que “seria muito mais importante fazer esse trabalho do que estar a importar as castas francesas para a Beira Interior”. A esse propósito, adverte: “Esta é a pior maneira para trabalhar o vinho da Beira Interior. Porque estamos a fazer cópias e, qualquer cópia, por melhor que seja, é sempre prior do que o original.”

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