Saúde - Quo vadis?

Porquê esta situação no SNS? Outubro de 2018 marcou a interrupção de pragmatismo inteligente no enquadramento dos sectores público e privado para a realização do Bem Comum. Foi substituído pela ideologia e por uma ficção: de que o sector público poderia dispensar a cooperação dos outros braços do sistema de saúde.

A arte do bom governo é previsão e organização antecipando problemas, especialmente quando não são novos. A crise nas Urgências hospitalares é um sintoma da doença do SNS. Não foi consequência de férias legítimas de “trabalhadores médicos” como se tentou passar para a opinião pública, mas sim do facto de muitos serviços estarem a funcionar no limite da sua capacidade humana.

A forma como o ministério lidou com o problema transmitiu improvisação, desconsideração pela profissão médica e contribuiu para insegurança da população. Reencontrei texto de 13/3/2015 intitulado Caos nas Urgências também no Hospital das Caldas da Rainha e do qual cito intervenção corajosa duma colega: “Não há efectivamente falta de médicos, há é falta de condições para os ‘agarrar’ neste inferno que vivemos diariamente, muitas vezes sou a única médica [do quadro] do hospital a trabalhar na urgência, com toda a responsabilidade clínica e de decisão organizacional que isso implica.”

O abandono de tantos “trabalhadores médicos” do SNS nos últimos anos agravou o problema, mas o ministério tinha obrigação de ter analisado as causas e actuado em conformidade. A proposta feita aos "trabalhadores médicos" pela actual titular da saúde foi, no mínimo, indecente. A opção fácil, o expediente, em vez do difícil caminho das pedras para a reforma necessária e o respeito pelos médicos.

Há disponibilidade financeira, isso sim, uma novidade que teria enchido de satisfação responsáveis anteriores, coarctados na sua acção pela tirania das Finanças! O recurso a tarefeiros, um expediente transitório para escamotear a despesa pública iniciado na primeira década do século XXI, cresceu e organizou-se. É símbolo duma política errada de recursos humanos.

Nas Urgências, a consequência era previsível: desorganizou-se a integração funcional das equipas, corroeu-se o mecanismo de responsabilidade clínica essencial à qualidade do serviço, perdeu-se a mística do serviço de urgência que passou a ser uma sobrecarga e não um desafio profissional e uma oportunidade de aprendizagem.

Porquê esta situação no SNS? Outubro de 2018 marcou a interrupção de pragmatismo inteligente no enquadramento dos sectores público e privado para a realização do Bem Comum. Foi substituído pela ideologia e por uma ficção: de que o sector público poderia dispensar a cooperação dos outros braços do sistema de saúde.

Usei a expressão “trabalhador médico” do discurso oficial. A epistemologia ensina-nos que a linguagem não é anódina, tem um significado. Neste caso, a desvalorização da profissão médica. De facto, somos todos trabalhadores e com muita honra, todos temos igual dignidade, todos somos necessários, mas temos níveis de responsabilidade distintos. E para bem de todos nós e para a vitória reclamada pelos políticos, os médicos portugueses na pandemia, superaram-se no cumprimento do seu dever profissional de serviço, de abnegação e responsabilidade, perante insuficiências que o poder continua incapaz de averiguar e assumir no exercício da responsabilidade política. Porque ela existe e não pode disfarçar-se com ilusões e promessas não cumpridas.

Resolver o problema das Urgências é uma necessidade, mas não pode ser dissociada da reforma urgente do SNS. Virar a página e mudar a política precisa-se e com as profissões da Saúde! Persistindo neste caminho, o SNS que a minha geração ajudou a construir, serviu e que tanto nos proporcionou não sobreviverá. O tempo da ideologia que a Internacional representa foi o passado que ninguém quer recuperar!

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