O ensino (cada vez menos) público no Reino Unido

E se a direcção de uma escola pública inglesa recruta professores e pessoal auxiliar, quem recruta o director? Os “governadores” da escola, mais precisamente o governing body, o qual é composto por representantes não remunerados da comunidade em redor. Sim, leram bem, não remunerados e, no entanto, com o dever último de gerir uma escola.

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Sim, existem linhas curriculares orientadoras, mas nem por sombra sonhem com um Governo a ter uma palavra a dizer sobre o currículo ministrado em cada escola, num país onde a cada corpo docente cabe a responsabilidade de decidir sobre os conteúdos mais adequados em função dos alunos em mãos.

O ensino é perfeitamente descentralizado em Inglaterra, tal como descentralizado é o recrutamento de pessoal docente e auxiliar, não tendo o equivalente ao ministério da Educação, entenda-se secretary of state for education, qualquer papel no preenchimento dos quadros. À escola, e a todas as escolas, basta assegurar a progressão dos seus alunos dentro do orçamento definido, sendo da responsabilidade do município a distribuição dos fundos por cada escola.

E se a direcção da escola recruta professores e pessoal auxiliar, quem recruta o director, ergo head teacher, de cada escola? Os “governadores” da escola, mais precisamente o governing body, o qual é composto por representantes não remunerados da comunidade em redor. Sim, leram bem, não remunerados e, no entanto, com o dever último de gerir uma escola, sendo obrigatório por lei a existência de um governing body para cada escola.

Este elemento, estou certo, é em si o mais caricato na estrutura educativa. Para já, por ser fruto do voluntariado e da boa vontade do cidadão comum, nem por isso conhecedor das múltiplas realidades de uma escola mas responsável por questionar e direccionar cada director desde o conteúdo curricular ao bem-estar dos alunos, desde o orçamento à qualidade das refeições escolares, sem esquecer a manutenção dos edifícios, a avaliação dos alunos, a formação dos professores, códigos de conduta, sanções disciplinares, onde se inclui a exclusão de alunos, só para enumerar alguns exemplos.

No fundo, o governing body é o reflexo de uma classe média e/ou alta cujos afazeres diários são inversamente proporcionais ao imenso numerário bancário, deixando assim tempo de sobra para devolverem à sociedade a sorte que lhes calhou em vida. Devo, no entanto, fazer uma adenda: por motivos mais que óbvios, e o Reino Unido não é excepção, é cada vez mais difícil recrutar governors, qual espécie em rápido declínio e cada vez mais rara. Temo, por conseguinte, estar para breve uma mudança na lei no que respeita ao organigrama escolar.

Sinal dos tempos? Sim, mas também um pouco de bom senso quando por maior que seja a boa vontade é sempre impossível, para não dizer pouco desejável, delegar no voluntariado o futuro da educação de um país.

Quanto às escolas, temos dois tipos maioritários: as state schools, mais conhecidas por escolas do estado e financiadas pelo erário público, cada vez menos quando comparadas com as academies, escolas anteriormente propriedade do Estado mas agora semiprivadas e nas mãos de mecenas, por exemplo um qualquer Lorde da House of Lords, entenda-se da nobreza.

Por norma, uma escola pública que falhe uma inspecção é imediatamente convertida numa academy, sendo o director demitido e o corpo docente sujeito a novos termos contratuais. E sim, já perdi a conta à quantidade de escolas onde os professores tiveram de se submeter a novas entrevistas, tantas vezes para o mesmo lugar mas por uma percentagem do salário inicial. Chamem-lhe liberalismo. Eu chamo-lhe perda de direitos em prol dos mesmos de sempre.

E não se enganem: a conversão de escolas públicas em academies está bem presente na agenda governativa pelo menos desde a minha chegada a terras de Sua Majestade no longínquo ano de 2007 e só a ausência de um Governo conservador pode levar a uma mudança de direcção. O emprego para a vida? A garantia de um emprego depende do cumprimento de objectivos anuais tantas vezes dependentes da progressão e sucesso dos alunos. E não, não há redução alguma de horário com o passar da idade, estando um professor com 65 anos de idade obrigado a dar as mesmas 25 horas de aulas semanais que um professor acabado de sair da universidade.

Se o sistema é exigente por um lado, por outro posso dizer ser do interesse das escolas o determinar de objectivos realistas numa profissão onde a paixão e a determinação vivem de mãos dadas e um bom professor será sempre um bom professor. No entanto, trabalhar num sistema onde ao aluno se dá sempre uma segunda oportunidade em detrimento das sanções do antigamente não é para todos e a perda de emprego nestes casos é célere, muitas vezes deixando o professor diante da assinatura de uma carta de despedimento ou um processo disciplinar seguido de despedimento por justa causa.

A escolha é óbvia, com o pessoal docente a arrumar no próprio dia os pertences na mal-afamada caixa de cartão para não mais voltar, ficando em casa com o vencimento por inteiro até ao fim do contrato naquilo a que os ingleses chamam de gardening leave, traduzido à letra por baixa para jardinagem. Ora se tal baixa pressupõe a existência de um jardim, o que dizer quando se vive em Londres num apartamento exíguo e partilhado com outras quatro nacionalidades, ausente de todas as condições mais o dito jardim? Um canteiro também vale, ou então um vaso, ficando o professor encarregue do mesmo até à prossecução do período de baixa.

Parece uma piada, mas não é. É antes uma cultura e um modo de pensar ainda assentes na glória de um império britânico cada vez mais distante. Não obstante as idiossincrasias do sistema vigente, não só adaptei-me como não me posso queixar da minha sorte, antes pelo contrário.

Apesar da precariedade inicial de dois anos entre alguns dos municípios mais carenciados de Londres, que são quase todos, com os alunos mais carenciados de Londres em edifícios devolutos e pré-fabricados apenas porque sim, porque por caridade lá se arranja um espaço para os excluídos das escolas e da sociedade, os mesmos excluídos que agora, mais do que nunca, precisam de todo o apoio e não têm nada, nem sequer um tecto para dormir ou pais que respondam pelo nome.

Se calhar pelos colegas de todas as nacionalidades, caribenhos, africanos, asiáticos, canadianos, às vezes ingleses, sempre jovens, ainda hoje jovens, eu é que já não que o tempo passou. Porque numa terra onde falta tudo há sempre oportunidades de trabalho e o mérito e o reconhecimento são uma constante e em conformidade com a progressão na carreira.

Afinal, tenho 44 anos e faço parte do quadro de uma escola há 11 anos. Quando fazemos greve e vimos para a rua somos meio milhão nas ruas de Londres. Quando saímos ao fim-de-semana há sempre um professor ao nosso lado, seja no comboio, num museu ou num restaurante a falar apaixonadamente da profissão. Sentimo-nos parte integrante e integrados. Temos orgulho e sentimo-nos realizados.

Somos professores. Finalmente, somos professores. E apesar do tempo e de tudo o que passámos, apesar das conquistas, ainda achamos que não merecemos e se calhar, nunca se sabe, vai tudo acabar amanhã.

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