Respirar pode ser mais perigoso do que fumar ou beber álcool

O relatório anual Air Quality Life Index revelou que a poluição atmosférica pode reduzir em mais de dois anos a esperança média de vida global.

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O relatório revelou que a poluição atmosférica causada por partículas se manteve alta apesar da desaceleração da economia provocada pela pandemia Reuters/SIPHIWE SIBEKO

Respirar é mais perigoso do que fumar cigarros ou beber álcool, de acordo com o mais recente relatório do Instituto de Política Energética da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. O estudo refere que a poluição do ar retira mais de dois anos à esperança média de vida global – mais do que o tabaco, o álcool, o conflito e o terrorismo.

O relatório anual, conhecido como Air Quality Life Index (AQLI), revelou que a poluição atmosférica causada por partículas – uma mistura de contaminantes como fumo, vapores, pós e pólens – se manteve alta, ainda que a pandemia da COVID-19 tivesse desacelerado a economia global e devolvido o azul ao céu de algumas das áreas mais poluídas do mundo.

Os dados científicos que comprovam os riscos da poluição para a saúde humana acumulam-se, segundo o relatório publicado esta terça-feira, que acrescenta ainda que os líderes mundiais não estão a tratar o problema com a urgência que merece.

“Seria uma emergência global se marcianos viessem à Terra e borrifassem uma substância que levasse a pessoa comum a perder mais do que 2 anos de esperança de vida,” disse, num comunicado de imprensa, Michael Greenstone, director do Instituto de Política Energética de Chicago. “Isto é semelhante ao que acontece em várias partes do mundo,” explicou. “Excepto que somos nós quem borrifa a substância, não alguns invasores do espaço sideral.”

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a poluição atmosférica pode levar a enfartes, problemas cardíacos, cancro do pulmão e outras doenças respiratórias. O relatório indica que a poluição está em vias de reduzir a esperança média de vida global em 2,2 anos. Em comparação, fumar tabaco reduz este número em cerca de 1,9 anos, enquanto beber álcool reduz esse período em 8 meses. Água não potável e mau saneamento podem levar a uma redução de 7 meses na esperança de vida e, de acordo com o AQLI, ao passo que o terrorismo e os conflitos retiram nove dias.

Ao contrário do tabaco e do álcool, explicam os investigadores do relatório, a poluição do ar é “praticamente impossível de evitar”. Devido aos riscos para a saúde cada vez maiores, no ano passado, a OMS actualizou, pela primeira vez, as orientações para os níveis aceitáveis de poluição atmosférica que as pessoas deveriam respirar. O tecto recomendado de 10 microgramas por metro cúbico de ar passou para 5. De acordo com a análise do AQLI, segundo os valores de referência revistos, cerca de 97% da população mundial vive em lugares onde a poluição atmosférica excede o nível recomendado

Segundo o relatório, a média global ponderada em função da população para a quantidade de partículas no ar diminuiu apenas ligeiramente entre 2019 e 2020, de 27.7 microgramas por metro cúbico de ar para 27.5, apesar de as restrições pandémicas terem reduzido as viagens e desacelerado a economia global.

“O facto de a poluição global se ter mantido, ou até aumentado, enquanto as economias paralisaram pelo mundo, sublinha que a poluição é um problema persistente que só pode ser resolvido por políticas fortes apoiadas por uma vontade de mudar ainda mais forte,” refere o relatório.

Sul da Ásia é a mais poluída

O Sul da Ásia é região mais poluída do mundo, de acordo com o relatório – e também o lugar onde o ar que se respira é mais mortal. O Bangladesh é o país mais poluído do mundo, enquanto cerca de 44% do aumento da poluição global desde 2013 vem da Índia.

A poluição no Sul da Ásia continuou a aumentar em 2020. Se os níveis actuais se mantiverem, os habitantes da região poderão perder, em média, cerca de cinco anos de vida. Nova Deli, a capital indiana, é a “megacidade mais poluída do mundo,” diz o documento, com níveis médios de poluição mais de 21 vezes superiores aos das orientações da OMS.

Em Novembro, as autoridades de Nova Deli fecharam escolas e gabinetes governamentais e pararam projectos de construção à medida que uma neblina densa envolvia o norte da Índia e as partículas no ar excediam os valores das directrizes da OMS em 20 vezes. Os habitantes tiveram de usar máscaras em casa. Um advogado em representação do governo municipal disse ao tribunal que respirar o ar da cidade durante um dia era equivalente a fumar 20 cigarros.

O aumento da poluição no Sul da Ásia advém do maior uso de combustíveis fósseis decorrente do processo de industrialização e desenvolvimento da região e do aumento da população. As queimadas de colheitas também contribuíram para o problema. A Índia lançou um programa nacional para melhorar a qualidade do ar em 2019, com o objectivo de reduzir os níveis de poluição em 20 a 30% dos valores de 2017, em 2024.

A poluição também continuou a aumentar em algumas áreas do Sudeste asiático e considera-se que quase toda a África central e ocidental – mais de 97% - tem níveis perigosos de poluição, de acordo com os parâmetros da OMS. Calcula-se que 92,8% dos Estados Unidos e 95,5% da Europa têm qualidade do ar pior do que a recomendada, embora apenas ligeiramente.

O relatório revela que os Estados Unidos e a Europa “têm posto em prática, com sucesso, normas firmes relacionadas a poluição”, ainda que seja necessário um foco governamental renovado sobre o assunto. Reduzir permanentemente a poluição atmosférica para atingir os objectivos das directrizes da OMS somaria 2,2 anos à esperança média de vida global, de 72 para 74,2 anos. A população mundial ganharia 17 mil milhões de anos de vida no total, revela o relatório.

O bom exemplo da China

Os investigadores apontam a China como um exemplo de país que tem limpo o ar com sucesso. Depois de receber críticas públicas em 2013, ano em que a China registou alguns dos seus mais altos níveis de poluição, o governo declarou uma “guerra contra a poluição”, proibindo novas centrais de energia com recurso a carvão em algumas regiões. Exigiu, também, a centrais já estabelecidas que reduzissem as emissões e a cidades grandes que limitassem o número de carros na estrada

Em conjunto, estas e outras medidas reduziram a poluição causada por partículas na China em quase 40% desde 2013, e aumentaram a esperança média de vida no país em dois anos. “Demorou várias décadas e recessões para os Estados Unidos e a Europa atingirem a mesma redução de poluição que a China conseguiu em sete anos, ainda que a sua economia tenha continuado acrescer”, diz o relatório. No entanto, aponta para o facto da poluição da China ainda exceder muito os níveis recomendados pela OMS.

O AQLI mede a poluição ao longo de 2020, devido ao atraso dos dados de satélite que utiliza. Este ano a China aumentou a produção de carvão no meio da escassez energética e das preocupações acerca da segurança energética, pioradas pela turbulência nos mercados energéticos internacionais na sequência da eclosão da guerra na Ucrânia. Greenstone afirmou, ao The Washington Post, que espera “um pequeno aumento” na poluição em anos vindouros à medida que mais países aumentam a utilização de carvão e outros combustíveis fósseis, em resposta à crise energética global.

“Entre os combustíveis fósseis, o carvão é o campeão em termos de produzir a poluição atmosférica causada por partículas que leva as pessoas, actualmente, a viver vidas mais curtas e doentes, à medida que aumentam o ritmo das mudanças climáticas”, afirmou Greenstone.

A poluição atmosférica está “profundamente interligada” com as alterações climáticas, revela o relatório, portanto combater a poluição “seria matar dois coelhos com uma cajadada”. “As políticas podem simultaneamente reduzir a dependência de combustíveis fósseis, que permitirá às pessoas viver vidas mais longas e saudáveis, e reduzir os custos das mudanças climáticas”, afirmaram os investigadores.

Mas isto exige maiores investimentos e vontade política, afirmam. Todos os anos, são gastos, em poluição atmosférica, menos de 45 milhões de dólares por todas as organizações filantrópica, globalmente, o que representa 0,1% do total de doações anuais, escreveu Christa Hasenkopf, directora do AQLI, na introdução do relatório. “Um aumento relativamente pequeno no apoio pode ter um impacto enorme, preenchendo falhas de gestão da qualidade de ar base, como o acesso a dados contínuos e fiáveis de monitorização da qualidade do ar”, explicou.

Para países em desenvolvimento, onde o custo de implementação de regulações radicais pode ser desencorajador, Greenstone defende abordagens de mercado como impostos sobre a poluição. “Estes países não são muito ricos e, portanto, a necessidade de crescimento económico é urgente,” disse. “Encontrar estas abordagens mais leves para facilitar o crescimento económico rápido com ar limpo que as pessoas possam respirar. Creio que é o melhor caminho a seguir”, conclui Greenstone.

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