As respostas não são hipócritas, as perguntas é que o podem ser

Não são os outros que duvidam das nossas capacidades, somos nós próprios.

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@designer.sandraf

Querida Mãe,

Uma das minhas filhas senta-se ao meu lado enquanto cozinho e choraminga que tem medo de subir ao palco na festa da escola.

“Ah! Não há problema nenhum! O que importa é divertires-te, ninguém está preocupado se te enganas, ninguém sequer repara! E qual é o problema se correr mal? Não acontece nada!”

A minha outra filha está nervosa com uma apresentação para a turma: “E se gozam comigo? E se me esquecer de tudo? E se não conseguir? E tiver má nota?”. Respondo-lhe com 100% tranquilidade: “Ó filha, por amor de Deus, não há problema nenhum. Não te esqueces nada, mas se te der uma branca, não faz mal! E se tiveres má nota, paciência, o que importa é o esforço que puseste nisso! Deu-te gozo, não foi? Vês! Isso é que é importante.”

Outra filha — sim mãe, não se esqueça que tenho muitas —, na noite anterior a um espetáculo de dança, pergunta: “Mãe e se, de repente, não conseguir fazer aquele salto mais difícil?”. Protesto: “Que disparate, querida. Primeiro, é claro que vais conseguir, e se houver algum problema inesperado, passa à frente, não é importante. O que importa é dares o teu melhor.”

Agora eu. Eu dois dias antes do meu concerto para o meu marido: “Estou a morrer de dores de estômago, estou super ansiosa. E se me esqueço das letras? E não aparece ninguém? E se vão, mas odeiam?” Ele responde: “Ó querida, és fantástica, e se te enganares não faz mal nenhum. Não te divertes a ensaiar? Isso é que importa! Ninguém repara sequer se te enganares nas letras. E o que é que acontece se correr mal? Não acaba o mundo!”

E eu atiro-lhe uma frigideira à cabeça. Sou uma hipócrita.

Por favor, mãe, conte-me a que hipocrisias se tem dedicado ultimamente para não me sentir tão mal!


Querida Filha,

Fartei-me de rir com a tua carta, a imaginar o rol de consultas grátis que deste às tuas filhas, a frigideira a voar (olha que os homens também se podem queixar de violência doméstica). Oh não, não me digas que não era para rir? Esta nossa tentativa de pôr um penso rápido nas feridas, só mostra que somos boas pessoas. Desajeitadas, muito provavelmente, mas é o que se consegue arranjar quando, ao fim do dia e com o jantar por fazer, os outros vêm despejar-nos em cima os seus “problemas”. Honestamente, vêm à espera de uma solução mágica, de uma segurança que sabem perfeitamente não lhes podermos dar.

Ana, as respostas não são hipócritas, as perguntas é que o podem ser. Não são os outros que duvidam das nossas capacidades, somos nós próprios. Porque se fossemos sinceros tínhamos de admitir que provavelmente é inevitável ficar ansiosos, nervosos, cheios de dúvidas para darmos o nosso melhor, para nos atirarmos às provas com a garra de uma primeira vez. E que estamos a pôr sobre os ombros dos outros, responsabilidades que são sobretudo nossas, e pelas quais teremos de ser nós, também, a assumir as consequências. E em 99% das situações — vamos ser sinceros — sabemos muito bem que somos capazes de lhes dar a volta.

Desculpa, vou continuar a virar o bico ao prego, porque me está a saber bem ir por aqui: talvez resultasse melhor nestas situações utilizar as técnicas da “psicologia inversa”. Experimenta dizer-lhes, a elas e a ti própria, e já agora a mim da próxima vez que te chagar com questões idênticas, que sim, que é certo que se vão enganar; que sim, vai correr tudo mal; que sim, é gravíssimo uma nota mais baixa, e por aí adiante. Suspeito, e falo por mim, que perante o cenário catastrófico e a injustiça da desconfiança nas nossas competências, ficávamos indignados, e protestávamos logo a nossa competência.

Boa noite, e bom concerto. E, sem sombra de hipocrisia, digo-te que vou lá estar e pela milionésima vez admirar a tua voz, as letras e as músicas incríveis que escreves, a tua criatividade e o teu talento. Mas, também, que se não for tudo absolutamente perfeito, lamento mas é mesmo verdade, o mundo não acaba.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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