Dor e vergonha na descoberta da vulva

Lembra-se de pensar entre lágrimas como a envergonhava aquela ferida. De como o sentimento de dor e vergonha estava intimamente ligado ao seu sexo.

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Por volta dos seis anos, descobriu, de forma traumática, que tinha uma vulva. Na altura não conhecia a palavra vulva. A mãe chamava ao sexo feminino “pipi”, “passarinha”, “rola” ou qualquer outra designação ridícula. Por volta dos seis anos, teve febre, ardor ao fazer chichi e logo a avó materna, experiente nas maleitas dos filhos e dos netos, lançou com assertividade o diagnóstico - “a miúda tem uma infecção urinária” - e mandou a mãe levá-la imediatamente ao médico.

Lembra-se de lhe pedirem para despir as cuecas; uma enfermeira jovem e sorridente, de voz melíflua. O gabinete, branco e iluminado com luz natural, tinha uma grande janela sem cortinas que dava para o pátio do hospital todo em cimento, e o médico, um senhor de barba baixinho e barrigudo, disse-lhe para se deitar na marquesa. Estava aterrorizada. O médico pediu-lhe para se portar bem, que se assim fosse oferecia-lhe uma seringa no final da consulta. Não foi por causa do prémio prometido, não estava interessada numa seringa de plástico para brincar aos médicos; fez o que o técnico de saúde lhe disse por medo de que pudesse doer. Ou seja, permaneceu imóvel e sem abrir a boca, pensou que naquela circunstância era aquilo que queriam dizer com “portar-se bem”.

O médico analisou-lhe o sexo, o pipi, com um cotonete enorme, nunca tinha visto nenhum assim tão comprido. Teve vontade de chorar, não doía mas era desconfortável e tinha vergonha. A mãe estava ali parada a olhar e ia dizendo: “Não custa nada, filha, vai ser rápido.” Lembra-se de conter com força o choro, sentia-se humilhada, não sabia porquê. Era a primeira vez que alguém lhe tocava no sexo, um médico, um desconhecido, a primeira invasão de privacidade.

A segunda prova da existência da sua vulva foi mais ou menos um ano depois deste acontecimento. Estava de férias com os primos e os tios no Alentejo, os pais tinham ficado em Lisboa a trabalhar. No Alentejo, passava os dias a andar de bicicleta acompanhada pelos primos. Percorriam as intermináveis planícies alentejanas ao final da tarde, quando as temperaturas baixavam um pouco mas ainda se podiam ver as ondas de calor emergindo do alcatrão. Numa dessas tardes, não sabe como é que fez aquilo, caiu de chapão no ferro da bicicleta de ciclista. Mesmo de chapa com o sexo.

Ainda hoje consegue lembrar-se da dor excruciante na vulva. Saiu a correr em direcção à casa onde estavam os tios, a chorar agarrada ao sexo. A tia mandou-a despir logo as cuecas e viram uma mancha de sangue sobre o algodão branco. Tinha feito dois golpes, um de cada lado da passarinha, como lhe chamava a mãe. Sangrava. Lembra-se de pensar entre lágrimas como a envergonhava aquela ferida. De como o sentimento de dor e vergonha estava intimamente ligado ao seu sexo.

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