Reino Unido quer alterar acordo do “Brexit” e abre potencial guerra comercial com a UE

Governo de Boris Johnson apresenta proposta para modificar protocolo da Irlanda. Bruxelas põe de parte qualquer renegociação e ameaça recorrer à justiça.

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Elizabeth Truss, ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido Reuters/UK Parliament/Jessica Taylor

O Reino Unido arrisca abrir uma guerra comercial e judicial com a União Europeia com a proposta de lei, apresentada esta segunda-feira no Parlamento, com a qual pretende alterar unilateralmente o protocolo da Irlanda que integra o acordo do “Brexit”. A decisão do Governo de Boris Johnson foi imediatamente contestada em Bruxelas, com a UE a admitir que poderá recorrer aos tribunais por considerar que a lei viola o direito internacional.

“É com significativa preocupação que tomamos nota da decisão do Governo do Reino Unido de apresentar legislação em que desaplica elementos centrais do Protocolo. A acção unilateral é prejudicial à confiança mútua”, afirmou em Bruxelas Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão Europeia e responsável europeu pelo acompanhamento da implementação dos acordos do “Brexit”, quase ao mesmo tempo que o Executivo britânico apresentava a proposta na Câmara dos Comuns.

A legislação agora proposta, com o nome de Lei do Protocolo da Irlanda do Norte e que foi apresentada pela ministra dos Negócios Estrangeiros, Elizabeth Truss, estipula que as empresas do Reino Unido que apenas comercializam com a Irlanda do Norte possam vir a escolher se serão regidas pela regulação comunitária ou britânica, de forma a evitar, segundo o Governo, a potencial discriminação dos produtos britânicos.

Ao mesmo tempo, pretende eliminar a competência do Tribunal de Justiça da UE (TJUE) sobre litígios relacionados com a Irlanda do Norte, que passariam a ser resolvidos por um mecanismo de arbitragem independente.

Contemplada na nova lei está também a criação de uma via verde que isentaria do controlo aduaneiro as mercadorias provenientes da Grã-Bretanha destinadas ao consumo na Irlanda do Norte e também de uma via vermelha para os produtos cujo destino seja a República da Irlanda, membro da União Europeia. A Irlanda do Norte poderá também beneficiar das mesmas isenções fiscais do resto do país, como, por exemplo, descontos no IVA.

O principal argumento do Governo britânico para anular partes substanciais do acordo de saída do Bloco europeu é que a actual versão do protocolo prejudica o Acordo da Sexta-feira Santa, o tratado de paz de 1998 que pôs fim a três décadas de conflito entre protestantes unionistas e republicanos nacionalistas.

“Este projecto de lei defenderá o Acordo de Belfast e apoiará a estabilidade política na Irlanda do Norte. Acabará com a situação insustentável em que os norte-irlandeses são tratados de maneira diferente do resto do Reino Unido, protegerá a supremacia dos nossos tribunais e a nossa integridade territorial”, disse Truss na apresentação da proposta no Parlamento.

Segundo a chefe da diplomacia de Downing Street, a proposta é uma “solução prática e razoável para os problemas enfrentados pela Irlanda do Norte”, não pondo de parte, no entanto, a possibilidade de o Governo britânico dar um passo atrás caso as potenciais negociações com a União Europeia venham a alcançar um resultado que seja aceitável para as duas partes.

Do lado europeu, não existe, porém, qualquer disponibilidade para negociar seja o que for, como Sefcovic fez questão de vincar.

“Renegociar o Protocolo não é realista. Nenhuma solução alternativa viável foi encontrada para este equilíbrio delicado e há muito negociado. Qualquer renegociação simplesmente traria mais insegurança jurídica para pessoas e empresas na Irlanda do Norte. Por estas razões, a União Europeia não renegociará o Protocolo”, afirmou, peremptoriamente, o vice-presidente da Comissão Europeia.

A Comissão Europeia irá, para já, “avaliar o projecto de legislação do Reino Unido”, avançou Sefcovic, avisando que a “reacção à acção unilateral do Reino Unido será proporcional” e não colocando de parte a hipótese de recorrer à justiça de forma a garantir o que Bruxelas vê como compromissos juridicamente vinculativos.

“Como primeiro passo, a Comissão considerará prosseguir o processo por infracção iniciado contra o Governo do Reino Unido em Março de 2021. Tínhamos suspendido esta acção legal em Setembro de 2021, num espírito de cooperação construtiva para criar o espaço de procura de soluções conjuntas, mas a acção unilateral do Reino Unido vai directamente contra este espírito”, acrescentou Sefcovic.

A proposta legislativa do Governo britânico deverá também enfrentar forte oposição no Parlamento, já que não é lícito que Boris Johnson, na ressaca da moção de desconfiança na qual 40% dos deputados do Partido Conservador votaram pela sua demissão, consiga reunir apoios suficientes para aprovar a legislação.

A maioria dos deputados da Assembleia da Irlanda do Norte escreveu esta segunda-feira ao primeiro-ministro britânico para dizer que não apoiarão uma medida que “vai contra os desejos expressos não só da maioria das empresas mas também da maioria das pessoas na Irlanda do Norte”.

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