Até quando comeremos sardinhas nos santos populares?

O recrutamento da espécie depende de muitas variáveis que não controlamos e certamente de mais algumas que ainda não conhecemos. Deveremos por isso adotar medidas de precaução com os melhores dados que temos em cada momento.

Quando em outubro de 2017 o ICES (Conselho Internacional para a Exploração dos Mares, na sigla em inglês) recomendou aos governos de Portugal e Espanha que em 2018 não se pescasse sardinha nas costas atlânticas ibéricas, caiu o Carmo e a Trindade. Um ilustre comentador político-desportivo, daqueles para quem opinião vincada sobre tudo é um pleonasmo desnecessário, apressou-se a escrever nas suas redes sociais qualquer coisa como “Não me façam isso!”. Bem sei que não passou de um saudável desabafo ao correr da tecla, mas ilustra bem a relação passional que temos com a sardinha. “Ainda se fosse cavala, que não ligo tanto…” ou “cortem antes no carapau e na sarda, se quiserem”, acrescento eu. Assim sendo, é bem mais difícil e desafiante gerir um recurso finito, sobreexplorado, como um ativo de capital natural que gere riqueza à economia perdurando no tempo. A paixão ofusca as decisões ponderadas, mas gostamos muito de viver com ela.

A generosa recomendação do ICES de mais de 40.000 toneladas de sardinha para 2021 (a última que conheço) veio aliviar pressão política sobre o tema, que deixou de ser primeira página. Tudo está bem no melhor dos mundos. Também não tivemos muitas festas populares mercê da pandemia, o que diminuiu o interesse sobre o assunto. Houve ainda um cantar “vitória” do sector que glorificou os esforços dos seus associados na preservação do recurso. A verdade é que não podemos assegurar a relação causa-efeito das medidas de proteção em tão pouco tempo. O recrutamento da espécie depende de muitas variáveis que não controlamos e certamente de mais algumas que ainda não conhecemos. Deveremos por isso adotar medidas de precaução com os melhores dados que temos em cada momento. E cumpri-las.

Relativamente a esta e a outras pescarias, existe um esforço coletivo enorme da sociedade que se materializa na concessão de subsídios e isenções que fazem com que o preço de uma sardinha no pão numa festa popular seja muito inferior ao custo real do produto, já em parte pago por todos, comam ou não sardinhas. Aceitemos ou não esta política (tenho muitas reservas em aceitá-la sobretudo por motivos de sustentabilidade do recurso), entendo que tais práticas deveriam pelo menos ser discutidas e escrutinadas: afinal de contas, quanto custa verdadeiramente uma sardinha? Não interessa… a sardinha é identitária, a pesca é identitária e por isso não se rege tão-só pelos princípios da sustentabilidade, nas suas vertentes social, económica e ambiental, qual caça numa reserva de povos indígenas. Não posso aceitar.

Até quando comeremos sardinhas nos santos? É difícil dizer. Ainda não comemos todas as sardinhas da costa portuguesa. A seguir, se a pescaria por cá já não der para o gasóleo, termos as da Cantábria, as de Marrocos e as da Cornualha britânica, que eles lá não ligam e economicamente passam a ser como o bacalhau que vem todo de fora. O cronograma destas mudanças estará muito relacionado com a vontade que tenhamos enquanto sociedade de continuar a financiar a insustentabilidade.

Um amigo de um amigo, daqueles que respaldam que uma história é verídica, tornou-se vegetariano por motivos éticos. Vegetariano, exceto farinheira, que isso é que não aguentou. Acredito que um dia o lema das Festas de Lisboa será algo como “comida sustentável, exceto sardinhas”. Sim, porque há limites.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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