Guerra na Ucrânia - a paz e as narrativas

Na civilização do espectáculo domina a volubilidade do humor social sobre os protagonistas, de que é exemplo alguma crítica sobre o Presidente ucraniano, que de herói passou a potencial vilão. Mas que poderia Zelensky ter feito de diferente?


A guerra na Ucrânia mediatizada em tempo real, confirmou a comunicação social como uma nova dimensão online do conflito e a importância de narrativas politicamente motivadas para interpretação dos factos. Infelizmente, é a civilização do espectáculo, com o primado da imagem forte, trágica que capta a atenção e audiências, em detrimento de análise rigorosa e isenta. Com a repetição das mesmas notícias e imagens corre-se o risco de intoxicação informativa e cansaço do espectador, anulando indignação e suscitando indiferença.

A paz é uma urgência e uma necessidade, pelo povo da Ucrânia em primeiro lugar. Deve ser objectivo prioritário das instituições internacionais, dos governos e dos cidadãos. As consequências económicas imediatas e a médio prazo da guerra exigirão um esforço concertado para a sua menorização, em especial o risco da fome em tantos países que tudo parece sugerir estar a ser convertida em arma política. Isso e a possível generalização do conflito. Por isso, rigor e isenção são essenciais.

A notícia de um longo comboio transportando tanques e outras viaturas militares para a fronteira sul da Bielorrússia, sugerindo que o seu destino poderia ser a Ucrânia e invasão possível pelo exército da Bielorrússia: dedução possível, dado o contexto. Mas sugerir que isso poderia constituir resposta militar a envolvimento militar polaco em território ucraniano foi surpreendente. Primeiro, porque uma realidade é permitir a passagem pelo seu território de armamento defensivo para um país independente vítima de invasão militar externa, outra é combater directamente com o seu exército. Segundo, porque o objectivo é preparar o espectador para nova invasão da Ucrânia pela Bielorrússia usando como álibi putativa intervenção polaca. Talvez para libertação e desnazificação da Polónia, como se mencionou na Duma, o parlamento russo. Este é o tipo de intervenção mediática que não serve nem a verdade nem a isenção informativa.

Terá a paz que esperar que os tanques russos entrem em Kiev ou que os mísseis arrasem Kiev, Kharkiv, Odessa e Lvyv, como em Mariupol? A destruição, em directo, da Ucrânia, da sua cultura e das suas tradições, o caminho para a paz final dos cemitérios?

Na civilização do espectáculo domina a volubilidade do humor social sobre os protagonistas, de que é exemplo alguma crítica sobre o Presidente ucraniano, que de herói passou a potencial vilão. Que poderia Zelensky ter feito de diferente? Fugir e aceitar o exílio que os norte-americanos lhe terão proposto, ao abrigo da longa mão russa que o tentaria envenenar como fez a outros? Render-se, permitindo à Rússia chegar sem dor às fronteiras do Ocidente, NATO e União Europeia?

Como Churchill, soube inspirar a resistência do seu povo, o heroísmo do seu exército e lutou com as armas possíveis para mobilizar a opinião pública mundial, um objectivo indispensável perante a desproporção de forças. Invocar a ambição russa de restabelecer a influência soviética na Europa será artimanha mentirosa quando o próprio Presidente Putin invoca esse desiderato? Antecipação de um futuro negro e doloroso que esses povos europeus não ignoram e temem? Mas sugerindo que acabará como mais um corrupto no pós-guerra, numa Ucrânia de formidáveis interesses ocultos, ao serviço de uma nova internacional negra, povoada de nazis pronta a impor o fascismo às democracias liberais? Parece-me an unfair step too far! Quase serviço a uma narrativa bem conhecida!

Como cidadão empenhado, atordoado pelo sacrifício imenso do povo ucraniano, só posso desejar que prevaleçam a razão, decência e humanidade, mas que as armas necessárias cheguem a tempo de evitar a aniquilação, com a qual nada terá valido a pena. Não creio que onda antidemocrática potencial venha do lado ucraniano. A tradição de fomentar discórdia, estimular dissensão entre nacionalidades e povos e apoiar a mais iníqua extrema-direita é do Kremlin. Acredito que Zelensky não quer a paz dos cemitérios e que luta pela sua Pátria. E recordo o poema de John Donne que Hemingway invocou no seu livro: não me perguntem por quem os sinos dobram, os sinos (em Kiev) também dobram por nós!

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