Khady perdeu a sua casa para o mar. Nenhum outro lugar a faz sentir em casa

Khady Sene teve de abandonar Langue de Barbarie, um dos bairros mais vulneráveis de Saint Louis, no Senegal. Em 2018, perdeu a casa, engolida pela subida das águas do mar. Ainda espera por uma habitação nova noutro lugar. Na maioria das manhãs, regressa ao areal em frente à povoação quase deserta para manter as raízes do seu negócio e da sua vida.

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A zona de Diougop onde muitos moradores de Langue de Barbarie froam alojados Samantha Reinders/Washington Post

Quatro anos tinham passado desde que as ondas engoliram a sua casa, mas lá estava Khady Sene novamente a pisar os escombros. Pedras e areia espalharam o que costumava ser o seu quarto, o quarto que o seu avô construiu, o quarto onde ela nasceu.

“Adoro até o cheiro”, disse Sene, 53 anos, levantando o queixo para a brisa. “O ar salgado. O peixe. Tudo isto.”

Ela soube antes que tinha de fazer as malas. As Nações Unidas tinham classificado esta cidade como a mais vulnerável à subida do mar em toda a África. A maré bateu à sua porta. No entanto, ela debateu-se para a conseguir deixar, mesmo depois de o governo lhe ter oferecido uma nova casa.

O alarme sobre o futuro das comunidades costeiras desencadeou uma onda de financiamento de gestão de catástrofes no Senegal, e o Governo está a utilizá-lo para afastar milhares de pessoas do oceano invasor. Mas o projecto de 93 milhões de dólares, aclamado como um modelo para os urbanistas, enfrenta um grande bloqueio no caminho: muitos residentes recusam-se a partir.

“Eles podem mover-nos”, disse Khady Sene, “mas não podem mover os nossos espíritos”.

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Langue de Barbarie - onde Khady Sene viveu até o mar levar a sua casa em 2018 - é um dos bairros mais vulneráveis de Saint Louis, Senegal Samantha Reinders/The Washington Post

Enquanto as cidades de todo o mundo devem enfrentar a maré crescente à medida que a Terra aquece, as nações em desenvolvimento enfrentam o maior risco. As taxas de subida do nível do mar mais do que duplicaram nas últimas décadas, dizem os cientistas, uma vez que a dependência dos combustíveis fósseis acelerou o derretimento das camadas de gelo e dos glaciares.

Na África subsariana, cerca de 86 milhões de pessoas terão de se deslocar devido às alterações climáticas até 2050, mais do que em qualquer outro lugar da Terra. Milhares de pessoas em Saint-Louis já perderam as suas casas ou vivem naquilo a que as autoridades chamam “zonas de risco extremamente elevado”.

Investigadores no Senegal descobriram que 80% da cidade poderá estar submersa em 2080, apagando este local de património mundial celebrado pela sua arquitectura, enquanto desenraizaria 150.000 pessoas.

Khady Sene tinha tentado afastar esta ameaça da sua mente. Durante gerações, a sua família viveu numa península entre o mar e o rio Senegal chamada Langue de Barbarie. Um canal construído para aliviar as cheias e que, acidentalmente, piorou a situação.

Ninguém queria desistir daquela comunidade de portas abertas, onde os vizinhos reuniam dinheiro para emergências e partilhavam pratos de peixe grelhado. Khady Sene não conseguia andar três metros, disse ela, sem parar para conversar com alguém.

Eles dependiam do oceano. Homens à deriva em pirogas pintadas a cores, pescando robalos e sardinhas com as suas redes. As mulheres compravam o peixe para temperar e vender, uma profissão que Khady Sene aprendeu com a sua mãe, que aprendeu com a sua mãe.

Uma noite, em Março de 2018, a água salgada arrancou-lhe a porta, varrendo a sua cama, fotografias de família e sentido de pertença.

Sim, ela sabia que já devia ter feito as malas. Ela simplesmente não conseguia começar. “Não até ser demasiado tarde”, disse ela, caminhando pelos destroços. “Não até termos perdido tudo.”

Khady Sene e a sua família escaparam ilesos, mas um homem idoso e um rapazinho que ela conhecia afogaram-se. As autoridades instaram as pessoas a partir. Muitos desembarcaram em campos de tendas. Sene aconchegou-se num desses campos até receber a oferta.

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Khady Sene a 12 de Abril de 2022 no local onde a sua casa costumava ficar até ser levada pelo mar em 2018, em Langue de Barbarie em Saint Louis, no Senegal Samantha Reinders/The Washington Post

A luta de um novo começo

O Senegal lançou em 2018 o que os líderes anunciaram como um projecto para enfrentar a crise do desaparecimento da costa. Com empréstimos do Banco Mundial num total de 80 milhões de dólares, e outros 13 milhões de dólares dos cofres do Estado, o Governo pretendia deslocar os residentes de Langue de Barbarie sete milhas [mais de 11 quilómetros] para o interior.

“Um exemplo claro para outros que estão a lidar com este desafio”, disse Insa Fall, uma consultora ambiental do Projecto de Recuperação e Resiliência de Emergência de Saint-Louis.

Este é apenas um dos vários esforços ambiciosos de adaptação a nível mundial. A Coreia do Sul aprovou planos no ano passado para uma “cidade flutuante” de plataformas interligadas. Os agricultores do Bangladesh voltaram-se para camas de sementes flutuantes e arroz resistente ao sal.

As autoridades do Senegal abriram uma povoação para refugiados climáticos em parcelas anteriormente reservadas para um estádio de futebol. Instalaram uma rede eléctrica, poços e casas-de-banho comuns numa aldeia chamada Diougop. Abriram uma escola, um salão de cabeleireiro e uma loja. Ergueram centenas de abrigos temporários. A construção das habitações permanentes está prevista para começar este mês.

Cerca de 1500 pessoas de Langue de Barbarie mudaram-se, tendo sido convidadas mais alguns milhares, de acordo com a Agência Municipal de Desenvolvimento do Senegal. Mas persuadir toda a gente em perigo a mudar-se é de facto o maior obstáculo, disse Marie Solange Ndione, uma conselheira social do projecto.

“Eles estão extremamente ligados à terra”, constata.

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A zona de Diougop onde muitas pessoas foram temporariamente realojadas após terem sido transferidas de zonas de risco Samantha Reinders/The Washington Post

Khady Sene tem sido o ganha-pão da sua família desde que o seu marido adoeceu. Eles são responsáveis por cinco filhos seus e mais outras seis crianças depois de a sua irmã ter morrido de insuficiência cardíaca.

Foi por isso que não ficaram na Langue de Barbarie, acampando em ruínas com outros resistentes. Sene queria protegê-los.

A família amontoou-se em três quartos, que também abrigavam as suas ovelhas. “Não devíamos viver como animais”, disse-lhe um dos seus genros.

Mas Sene pediu paciência, apesar de o abrigo temporário ter ficado demasiado quente. Apesar de, longe do mar, ela sentiu a sua pele a secar.

Ela esperou e esperou pela sua casa definitiva. Pensou que estaria terminada no ano passado. Os promotores, que disseram ter gasto uma pequena fracção do orçamento até agora, justificaram que os atrasos foram provocados pelas decisões sobre quem deveria receber o quê, entre outros obstáculos logísticos.

“Estou grata pela segurança”, disse ela. “Mas é tão difícil viver desta forma.”

A povoação parecia estranhamente vazia numa noite recente, em nada se parecia com os becos poeirentos de Langue de Barbarie, onde as crianças brincavam, as ovelhas baliam e os velhos sentavam-se lá fora com o rádio ligado. Alguns dos abrigos pareciam estar abandonados. Um deles tinha teias de aranha.

Quantas pessoas ainda viviam aqui?

“Centenas. Talvez 1000”, disse Mamadou Thiam, presidente do comité de gestão residente, que também perdeu a sua casa para as ondas, “mas as pessoas regressam ao mar durante o dia e dormem aqui à noite”.

As cidades do Senegal já estão cheias, dizem as autoridades, pelo que devem encontrar outros lugares onde os refugiados climáticos possam recomeçar. Os engenheiros encorajaram os recém-chegados de Diougop a inscreverem-se em formação profissional gratuita e a trocarem os seus meios de subsistência marinhos por construção, agricultura, restauração, limpezas ou costura. Nenhum deles tem carro, e o regresso a Langue de Barbarie pode demorar duas horas de autocarro.

“Os pescadores têm de ir para o mar muito cedo por volta das cinco horas da manhã e normalmente voltam muito tarde”, disse Marie Ndaw, engenheira civil da Agência Municipal de Desenvolvimento, “e as linhas de autocarro não cobrem estas necessidades.

Khady Sene considerou o curso de restauração gratuita. Mas ela preferiu o seu negócio de peixe. “Mantém-me ligado às minhas raízes”, diz.

Na maioria das manhãs, ela luta por um lugar no autocarro. A costa ainda lhe dá a sensação de estar em casa.

O desejo de ficar

Os amigos pescadores de Sene avisavam-na à noite quando esperavam uma grande pescaria. Por vezes, ela comprava o suficiente das suas capturas para precisar de uma carroça puxada a cavalos para o transporte. Num bom mês, o seu negócio de salga rendia 80 dólares.

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MIlhares de pessoas perderam as suas casas ou vivem em zonas que as autoridades classificam como de "alto risco" Samantha Reinders/The Washington Post

Sempre que podia, visitava as antigas terras da sua família. O oceano tinha apagado os seus quartos, mas as paredes do seu irmão ainda estavam de pé. “Tive saudades suas”, disse ele enquanto ela vagueava por ali. Há semanas que não se viam. Ele raramente visitava a povoação.

“Devias juntar-te a nós”, disse-lhe ela.

“Prefiro esperar que as ondas me levem”, respondeu ele.

Sene enterrou a sua cara nas mãos.

Ela compreende o desejo de ficar. As memórias felizes assombram-na: correr para os pescadores na praia como uma menina, entregar o robalo aos vizinhos que a recompensaram com cinco cêntimos.

Sene disse ao seu irmão que o veria mais tarde e entrou pelo areal. Rostos familiares rodearam-na na praia, um refrão de “A paz esteja convosco! Como está a família?”

Encontrou um imã, que divide o seu tempo entre duas esposas, uma aqui, a outra em Diougop. Saudou o seu antigo vizinho, Alioune Sarr, de 50 anos, que vive numa casa parcialmente desmoronada. Um gato passeava-se nos escombros da sua antiga sala de estar.

“O ar aqui é tão fresco”, disse Alioune ​Sarr. “Não vou para um acampamento que é só vento e poeira.”

Não é um acampamento, Sene contrapôs. As casas verdadeiras estão a chegar em breve.

“Não posso viver de falsas promessas do Governo”, respondeu o homem. Sarr era um pescador. Mudar-se para o interior iria prejudicar o seu rendimento. Ele não queria guerrear por um lugar no autocarro.

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A colónia de Diougop no Senegal, em April de 2022 Samantha Reinders/ The Washington Post

Mas ele pode morrer aqui, disse Khady Sene. Todos eles podem.

“Eu preferia morrer com ar fresco”, disse ele, “e a natureza”.

Sene bateu-lhe levemente no braço. Atrás deles, as ondas batiam na areia.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post