A minha melhor amiga

Falo com a Mariana de vez em quando no Instagram para marcar um café? Claro que não. A Mariana é a minha melhor amiga. Toda a gente sabe.

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Edward Cisneros/Unsplash

Na televisão um homem engravatado e circunspecto fala acerca de economia e política. O meu pai, recostado, de cabelos grisalhos e pantufas, aparentemente interessado nas opiniões urdidas pelo dito, revela, sem esconder o orgulho: “Ganhei-lhe numa batalha de soldadinhos.”

Conta-me que o senhor em questão era seu vizinho e que competiam com berlindes e soldadinhos de chumbo. Quando ouço estas memórias da infância do meu pai, que envolvem berlindes, soldados e caricas, objectos que por gap geracional não povoaram a minha infância, imagino-o de suspensórios e boina, a sépia, a comer uma maçã: uma mistura entre uma criança de Dickens e o Pinóquio. É esquisito pensar que ele já foi pequenino.

O meu pai refere-se a esta batalha como se tivesse comparecido em Alcácer Quibir. Aparentemente, o exército deste seu vizinho era gigantesco, tinha recebido um fornecimento avultado de armas por ocasião do seu aniversário de sete anos, mas o meu pai e o meu tio, mesmo parcamente armados, conseguiram dar conta do batalhão inimigo. Este senhor pode saber muito de economia, mas não importa, será sempre o menino que não conseguiu atingir o famoso soldado deitado. Quando os dois se encontram, a conversa vai parar ao inolvidável combate. A vanglória permanece nos olhos risonhos do meu pai e o lampejo indistinguível da derrota nos olhos do senhor.

Lembrei-me disto porque num destes dias soube que a Mariana é directora de marketing de uma empresa. Achei absurdo. Que disparate! A Mariana não pode ser directora de marketing de uma empresa. A Mariana está comigo na biblioteca à procura da melhor solução para construirmos um avião para voarmos dali para fora, porque temos urgência em escapar ao peixe cozido do refeitório de terça-feira, que ruminamos sob o olhar pertinaz e tutelar da Doutora Fátima.

A Mariana é a minha amiga das aventuras, perseguimos pistas infinitas que achamos que alguém deixou pelo recreio, para resolver mistérios que inventamos. Tudo é suspeito: o senhor Manuel é suspeito, a senhora da enfermaria é suspeita, o armazém onde se guarda o material de Educação Física? Suspeito. O facto de o director do colégio morar numa casa dentro do próprio colégio? Tudo isto é suspeito e pede uma investigação. E lá vamos nós averiguar os vestígios, para descobrirmos a grande emboscada.

Andamos juntas no Xilofone e aprendemos músicas japonesas. Ela é o 979 e eu o 789. Dividimos irmãmente Kitkats e as pontinhas dos queques. Lemos os livros do Bando dos Quatro ao mesmo tempo, combinamos ir juntas à casa de banho a meio da aula, jogamos Uno e usamos calças do Velho.

Quando ela soube que eu tinha sido mãe, torceu o nariz. Isso não faz sentido nenhum. Nós estamos as duas nervosas porque vamos dar o primeiro beijinho a um rapaz, as duas ansiosas porque nunca demos um beijinho e usamos aparelho. Não temos grande vontade, mas instituiu-se que era assim e não queremos ficar para trás nos interrogatórios impiedosos das colegas acerca de técnicas de osculação. Sim, estamos a dar o primeiro beijinho exactamente no mesmo dia, ao mesmo tempo. E estamos a ter a primeira desilusão amorosa logo a seguir, quando descobrimos que fomos vítimas de uma aposta entre os rapazes.

A Mariana em reuniões de briefing? Jamais. Ela está comigo a recortar fotografias para colar em cartolinas cor-de-rosa choque para apresentarmos um trabalho de Ciências da Natureza. Estamos as duas a causar um incêndio numa cozinha do SIMS para assassinar uma mulher.

Estamos tristes porque fomos as únicas a escolher ir para Humanidades e não foi aberta turma para a área, e por isso vamos ter de sair do colégio. E não é de avião.

Eu e a Mariana temos casas e pagamos IRS? Que estupidez! A Mariana mora com os pais e o irmão, eles são muito arrumados, dobram os sacos de plástico até ficarem mínimos e não ocuparem espaço, a mãe dela faz uma lasanha deliciosa e eu como salada em casa dela, ajudo a levantar a mesa, sou muito bem-educada e finjo que é assim que procedo em minha casa.

Falo com a Mariana de vez em quando no Instagram para marcar um café? Claro que não. A Mariana é a minha melhor amiga. Toda a gente sabe.

Mariana, estou a achar isto tudo muito suspeito. Encontra-te comigo na biblioteca, temos de construir um avião para voarmos daqui para fora. A ver se encontramos o passado que eu acho que isto aqui é uma emboscada.

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