Um espírito em dois corpos

Separemos o superficial do essencial, o transitório do perene: na amizade, não há interesse ou calculismo, obrigação ou cobrança, mas sim vontade de fazer bem a outro, sinceridade, generosidade, altruísmo e confiança.

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Markus Spiske

Começo por enumerar os meus amigos. “Contar amigos, que infantil, João. Os amigos não se contam. Desfrutam-se, apoiam-se, amam-se”, repreendi-me. Pensava em meia dúzia de pessoas quando o telefone tocou. Era o meu pai. Trocámos meia dúzia de palavras e desligámos. Nesta fase da vida, o meu pai é meu pai e meu amigo. Da infância à idade adulta, foi sobretudo pai, mais rigoroso nas marcas de hierarquia, nos conselhos com poder vinculativo, nas avaliações, nas discordâncias face à forma como eu desejava ser visto, na compreensão sem concessão. Tudo para o meu bem e por amor. O papel de um pai.

“Há amigos que são como se fossem da família”, ouvimos dizer. Como se o grau supremo da ligação entre pessoas fosse ser da família, como se os familiares fossem sempre amigos. Perante o impasse, saio para um passeio, recorrendo à velha estratégia de deixar a ideia marinar sem lhe prestar muita atenção, na esperança de que, julgando-me distraído, se desenvolva. E, então, de mansinho para não a afugentar, saco do lápis e do bloco e registo. Umas vezes, resulta. Outras, não. Também é assim com as amizades.

Cruzei-me com muita gente durante o passeio. Cumprimentei e fui cumprimentado. O normal: o bairro é amigável. Entrei na pastelaria. “Bom dia, amigo! É um café, por favor!” É notável a facilidade com que tratamos um desconhecido por amigo. “Aqui está, amigo”, responde-me. A palavra banalizou-se nas relações transitórias e superficiais. Nenhum mal vem ao mundo, é só um trato amigável. Perversa é a prostituição da palavra amizade nas conexões comerciais, empresariais, políticas, académicas, burocráticas e por aí adiante. Parei a observar, através da chávena translúcida, o contraste bem definido entre a espuma dourada e o café, escuro como a noite. A dada altura, usei a colher para os misturar. Depois, suspendi o gesto e aguardei. A espuma voltou a subir, vincando o contraste. Um amigo verdadeiro não se confunde com coisa nenhuma. Por vezes, mercê de certos estados emotivos, tendemos a encaixar familiares, camaradas, companheiros, colegas ou conhecidos na categoria de amigos. Separemos o superficial do essencial, o transitório do perene: na amizade não há interesse ou calculismo, obrigação ou cobrança, mas sim vontade de fazer bem a outro, sinceridade, generosidade, altruísmo e confiança.

“Bom dia, vizinho”, ouvi. “Olá, vizinho”, repliquei. Assim está bem. Somos só vizinhos. Aproximei-me e acariciei o cão. Vejo-os quase todos os dias, de manhã e ao fim da tarde. Pobre cão, não deve ser fácil fazer amigos em passeios breves e com hora marcada. Um dia, aproveitando a trela em extensão máxima e o dono distraído, vi-o de volta de uma cadelita vadia. Um namorico fugaz, intenso, certamente sem compromisso. Fiquei feliz pelos dois, mas também apreensivo. Espero que entendam a natureza da relação e que não se deixem cair no lugar-comum de que, quando um enamoramento acaba mal, é sempre possível desenvolver uma amizade. Nem sempre é.

O enamoramento, amiúde confundido com amizade, tem um começo definido, é uma revelação, fruto da paixão. É êxtase, mas também sofrimento. Nasce sem reciprocidade (podemos enamorar-nos de alguém que não conhecemos) e pode não ser correspondido. A amizade resulta de encontros sucessivos e aprofundamentos, exige algum tipo de reciprocidade, não podemos ser amigos de alguém que não conhecemos, e repudia o sofrimento. Quem nos faz sofrer não é nosso amigo. Só se pode ter um amigo, sendo um amigo.

Regresso a casa. Tiro um envelope da caixa do correio. Já o esperava. O João avisou-me que o vinha deixar. Lamentei não estar em casa para o receber em mão. “João Irmão da Silva”, lê-se na letra escrita pela sua mão. Irmão sem aspas, como se pertencesse desde sempre ao meu nome. Irmãos. Não por vínculo de sangue. Irmãos gerados no coração. Irmãos de ajuda, conforto e fidelidade em todos os momentos e travessias, em dias serenos ou tumultuosos. “Há quanto tempo não nos vemos?”, perguntei-lhe numa mensagem. Ele sabe sempre estas coisas. Ou encontra forma de o saber. “Deixa-me pensar bem”, respondeu, sem porquês ou hesitações. Regressou pouco depois. “Feira do Livro, 11 de junho de 2016. Tenho uma fotografia da ocasião.” Observei-a. “Quase seis anos”, respondi. O resto foi silêncio e reflexão. Passam-se meses sem qualquer contacto. E, no entanto, se agora o reencontrasse, seria como se o tivesse deixado há um instante e com ele partilharia, sem hesitação ou dissimulação, todos os meus segredos. Como se estivesse sozinho comigo próprio, o meu espírito em dois corpos.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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