A propósito de “trabalho digno”
A “presunção de aceitação” do despedimento, que se liga ao recebimento da compensação pecuniária respectiva, e, sobretudo, à exigência da restituição dessa compensação para poder impugnar o mesmo despedimento, visa travar o acesso do despedido à justiça
A expressão “trabalho digno” ou “trabalho decente”, posta a circular por propostas do anterior director-geral da Organização Internacional do Trabalho, o chileno Juan Somavia, ganhou uma dimensão emblemática relativamente aos esforços de melhoria da condição social e económica de quem vive do seu trabalho. Ao mesmo tempo, abriu algum espaço a exercícios semânticos mais ou menos frívolos, como o de se jogar com as noções contrapostas de “trabalho indigno” ou “trabalho indecente”.
Na realidade, o significado útil daquelas expressões, cunhadas para exprimir de modo concentrado uma reorientação estratégica da OIT, torna claro que os adjectivos em causa se aplicam, não ao trabalho nem a quem o realiza, mas aos Estados e aos empregadores. Ao Estado cabe, com efeito, regular e controlar as condições de trabalho de modo a garantir a salvaguarda da dignidade de quem o efectua. Aos empregadores incumbe, naturalmente, gerir as relações de trabalho segundo critérios que, igualmente, respeitem e preservem a dignidade pessoal e profissional dos trabalhadores. O que se requer é, em suma, um Estado digno e empregadores decentes.
De (um regime de) trabalho “indigno” se pode falar quando, por exemplo, a lei reduz a contrapartida económica do trabalho suplementar, isto é, do trabalho exigido para além da duração contratada. Dois dos vectores da estratégia do trabalho digno, segundo a OIT, são a criação de emprego e a garantia dos direitos do trabalho. O trabalho suplementar tem a sua natural função, mas, sobretudo quando utilizado rotineiramente, no lugar de trabalho normal (como sucede, por exemplo, em tantas empresas que organizam “turnos de trabalho suplementar”), é inimigo frontal da criação de emprego. Acresce que é obrigatório: o trabalhador só se pode furtar com fortes motivos. Reduzir a sua remuneração (como aconteceu, entre nós, em 2012, mediante soluções “austeras” que se mantêm) convida à utilização sistemática de trabalho extra (que é um facto, desde há muito tempo) e dispensa a criação de (muitos ou poucos, tanto faz) postos de trabalho. Os números são eloquentes acerca da quantidade enorme de horas suplementares que a nossa economia absorve. Por outro lado, a redução das remunerações é uma amostra de como se deixa de lado a garantia dos direitos do trabalho.
De trabalho “indigno” – justamente por contraste com o desígnio da garantia dos direitos do trabalho – se trata também quando o mesmo legislador (remontando agora à sua encarnação de 1989) cria e mantém um mecanismo destinado a inibir os trabalhadores despedidos de recorrerem ao tribunal. Referimo-nos à “presunção de aceitação” do despedimento, que se liga ao recebimento da compensação pecuniária respectiva, e, sobretudo, à exigência da restituição dessa compensação para que se possa impugnar o mesmo despedimento. É, na aparência, um regime absolutamente ilógico, pois, fosse o despedimento lícito ou ilícito, o trabalhador sempre teria o direito de receber (pelo menos) esse montante. Mas tem um propósito e uma razão de ser: numa altura de natural dificuldade económica (após o despedimento), o trabalhador terá fortes motivos para não devolver a compensação posta à sua disposição, ficando, assim, impossibilitado de impugnar o despedimento. A intenção não pode ser outra: travar o acesso do despedido à justiça. Por outras palavras, ainda: neutralizar a garantia dos direitos em causa.
Não poderá falar-se de uma consistente realização dos objectivos do “trabalho digno” em Portugal enquanto persistirem na nossa legislação – como sucede há tantos anos -- esses traços pouco decentes, reminiscências de conjunturas políticas e económicas passadas e, supostamente, ultrapassadas.