Cavaco desafia Costa a fazer “mais e melhor” e ironiza com um “nobody is perfect

Num artigo de opinião carregado de ironia, Cavaco Silva recorda as suas maiorias “dialogantes” e atira para António Costa o desafio de desempenhar a sua maioria absoluta “na perfeição”. “Nobody is perfect”, diz Cavaco. Mas Costa tem agora a pressão do ex-Presidente da República para o ser.

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O ex-Presidente da República reagiu às declarações de António Costa sobre maiorias absolutas que foram "poderes absolutos" Miguel Manso

Dois meses depois de António Costa ter dito que faz parte de uma “geração que se bateu contra uma maioria existente que, tantas vezes, se confundiu com um poder absoluto”, o ex-Presidente da República (e ex-primeiro-ministro) Aníbal Cavaco Silva respondeu ao que foi lido como uma referência aos seus governos, embora o seu nome não tenha sido citado pelo primeiro-ministro socialista.

Num artigo de opinião publicado esta quarta-feira no Observador, Cavaco Silva desafia o actual primeiro-ministro a fazer “mais e melhor” do que ele, ironiza o quão “perfeita” será esta maioria absoluta socialista e atira metas a Costa.

Embora a resposta tenha tardado (e venha embrulhada em ironia), o título do artigo de opinião assinado por Cavaco Silva dá um recado directo a Costa: “Fazer mais e melhor do que Cavaco Silva”. O texto começa com o ex-Presidente da República a dar as felicitações a Costa pela vitória nas legislativas de Janeiro de 2022 para logo depois lembrar que teve não uma, mas duas maiorias absolutas e que a segunda se deveu “à obra realizada pelo Governo” e não a “benesses”. “Estou, aliás, convicto de que o senhor primeiro-ministro é capaz de fazer mais e melhor com a sua maioria absoluta e não tem qualquer razão para ter complexos”, atira.

Na origem do “repto” do antigo chefe de Estado estão as declarações de António Costa no discurso na cerimónia de posse do actual Governo. Depois de já na noite eleitoral o primeiro-ministro ter afirmado que queria “reconciliar os portugueses com a maioria absoluta”, Costa deixou críticas a uma maioria absoluta em específico na história democrática, ao dizer que fez parte de uma “geração que se bateu contra uma maioria existente que, tantas vezes, se confundiu com um poder absoluto”, isto é, os governos do ex-primeiro-ministro social-democrata.

Os desafios deixados por Cavaco

Ao longo do texto, Cavaco Silva vai deixando metas para António Costa, recordando como os seus governos conseguiram “a redução da inflação”, “o aumento real dos salários e das pensões”, uma “elevada taxa de crescimento da economia” e a “aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE como nunca mais voltou a acontecer”.

Cavaco lembra ainda que avançou com revisões constitucionais (1989 e 1992) e questiona se Costa “teve conhecimento da intensidade e da profundidade do diálogo entre os representantes do PS e do PSD”. E contrapõe “o nível de crispação partidária e a rudeza da linguagem nos debates entre os responsáveis políticos na Assembleia da República” à memória que guarda “da cordialidade, a urbanidade e o respeito mútuo que sempre imperou nas minhas múltiplas reuniões com os líderes dos partidos da oposição (Vítor Constâncio, Jorge Sampaio, António Guterres, Adriano Moreira, Freitas do Amaral, Álvaro Cunhal, Carlos Carvalhas, Ramalho Eanes e Hermínio Martinho) e a dignidade e o sentido do interesse nacional que marcou a cerimónia em que eu e o líder do PS assinámos o histórico acordo político de revisão constitucional”.

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Rui Gaudencio

No mesmo “espírito de diálogo com a oposição” — para dizer que também ele teve uma maioria dialogante como aquela que Costa prometeu —, Cavaco lembra que foram leis como a Lei de Bases do Sistema Educativo, a Lei das Finanças Locais, a primeira Lei de Bases do Ambiente ou, a Lei de Segurança Interna. “Quero também lembrar-lhe o intenso, profundo e frutuoso diálogo dos meus governos de maioria absoluta com os parceiros sociais”, vinca. E faz mais um ataque: “Pelo que observei nos seis anos de governo da ‘geringonça’, V. Exa. considera certamente um exagero o meu entusiasmo e valorização do diálogo e da concertação social”.

Cavaco aponta ainda o dedo “à deterioração da qualidade dos serviços prestados pelo Serviço Nacional de Saúde durante o tempo do governo da ‘geringonça’” e também aqui diz estar “certo” que ao governo de Costa “não faltará a coragem para fazer mais e melhor do que foi feito pelos meus governos na área da saúde”.

Cavaco não é “perfect”, mas Costa terá tudo “na perfeição"

E, carregando na ironia, Cavaco (a quem é atribuída a frase “raramente me engano e nunca tenho dúvidas") assume momentos de “insuficiência de diálogo”. “Costumo dizer: Nobody is perfect [em português: “ninguém é perfeito], conclui Cavaco. Porém, abre uma excepção para Costa.

“Tudo correrá na perfeição”, diz Cavaco. “Nenhum partido, nenhuma organização sindical, empresarial, social, cultural ou ambiental se queixará de falta de diálogo e de abertura do governo para aceitar as suas propostas; as reformas que o país urgentemente necessita serão feitas em clima de toda a tranquilidade política e a decadência relativa do país em termos de desenvolvimento será revertida”, ironiza.

Para concluir, recorrendo às palavras de Costa que originaram a reacção, Cavaco afirma que — por oposição à linha dominante do socialismo que o primeiro-ministro integra — fez “parte de uma geração que se bateu contra a estatização da economia, a atrofia da sociedade civil e a queda do poder de compra dos portugueses, que se orgulha de ter contribuído para dar um passo significativo na aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE”.

Pelo meio, Cavaco Silva não ignora a diferente relação que ambos têm com o mediatismo (queixa-se que os jornalistas não gostam de si) e aborda a relação do PS com a comunicação social. “O senhor primeiro-ministro sabe que nunca tive jeito ou apetência para a arte de sedução dos jornalistas e que, ainda hoje, muitos deles não gostam de mim, o que nada me incomoda. Esta é uma área em que V. Exa. é, e continuará a ser, muito melhor do que eu”, conclui.

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