Excelência, exigência e existência
A educação é uma batalha que se trava corpo a corpo, aluno a aluno. Muito do que pode constituir uma melhoria no ambiente nas universidades e politécnicos passa pela consciencialização de que os alunos devem ser tratados como indivíduos.
Os alunos do ensino superior estão em geral sujeitos a muita pressão, que resulta em parte dos requisitos de excelência das respectivas instituições. Contudo, demasiada pressão pode originar colapso. Os alunos precisam ter vida própria e saúde, física e mental. A tentação é baixar o nível. Daí que se levante a questão: será possível ter um debate equilibrado sobre o tema da exigência no ensino superior?
A sociedade espera legitimamente que as instituições de ensino superior cumpram a sua missão, que inclui formar quadros altamente qualificados, que possam desempenhar no futuro as suas funções de forma competente, no contexto dum mundo globalizado e cada vez mais competitivo. Sim, os futuros profissionais enfrentarão pressão, como advogados, fisioterapeutas, professores, actuários, veterinários, tradutores ou engenheiros. Eles terão de ser treinados não só nas áreas científicas da sua especialidade, mas também a desenvolver competências, tais como a resolução de problemas, trabalho colaborativo e criativo, pensamento crítico, saber fazer, comunicação e a mera capacidade de trabalho, nomeadamente sob pressão. Pressão em cumprir prazos, pressão em gerir recursos e no estabelecer de prioridades. A forma de treinar alguém neste sentido pode passar precisamente por… exercer pressão, não pela mera pressão, mas pressão simulando o ambiente futuro, pressão visando a excelência, para que cada aluno possa ser a melhor versão possível de si mesmo. Como no treino dum atleta, aliás.
Têm vindo recentemente a lume notícias relacionadas com o ambiente que se vive no ensino superior, nomeadamente com a pressão sentida por parte dos alunos e as respectivas consequências, em especial a nível da saúde mental, bem como situações em que alegadamente os alunos possam ter sido desrespeitados como indivíduos. É inequívoco que o abuso de autoridade deve ser combatido e deve-se admitir que – sem cercear a liberdade de expressão tão cara ao ambiente universitário – algumas expressões e abordagens, que até podem ser entendidas de forma abstracta como formas de humor, mesmo que inocentes, podem na prática ter uma leitura diferente, negativa, por parte de quem seja visado, nomeadamente os alunos.
A tolerância e ausência de uma certa hipersensibilidade dos últimos têm de ser equilibradas com o bom senso e sentido de responsabilidade e respeito por parte dos primeiros. Naturalmente que, como em qualquer outro contexto, más práticas e ilícitos devem ser prontamente denunciados a quem de direito (órgãos de gestão, provedorias e, em casos extremos mas raros, as autoridades policiais e judiciais), sendo que qualquer escrutínio transparente e justo que advenha duma maior exposição mediática destas temáticas só pode beneficiar todos os envolvidos. Dito isto, será possível ter um debate equilibrado sobre o tema da exigência no ensino superior?
Instituições de ensino superior excelentes atraem alunos excelentes, muitas vezes os melhores das suas turmas ou mesmo das suas escolas. Ao chegar à universidade, eles constatam que muita coisa mudou. Muitos mudam literalmente de local de residência e isso pode ter um enorme impacto negativo. Mas é mais que isso.
O ritmo a que as matérias são leccionadas, a dificuldade das mesmas, tudo é diferente no ensino superior. E mais. A avaliação de conhecimentos por um lado afere a compreensão das matérias, mas também promove a seriação dos alunos. Jovens que estavam habituados a ser os melhores do seu grupo, podem agora encontrar-se em território desconhecido: enfrentar a primeira reprovação na vida, ter frequentemente notas abaixo da média da turma (metade dos alunos terá notas abaixo da média…), o que pode ter consequências terríveis, e que não podem ser negligenciadas, a nível psicológico. Aliás, o problema do burnout nos alunos universitários portugueses foi estudado recentemente por investigadores da Universidade de Aveiro, e as respectivas conclusões merecem uma análise cuidada por parte de todos os agentes educativos.
Mesmo que a auto-estima do aluno não esteja em causa, o facto permanece que a pressão está lá e mesmo que se admita que é parcialmente benéfica, muitas vezes os alunos podem-se perguntar legitimamente: conseguirei “sobreviver” a tudo isto? Sim, os alunos são pessoas, que têm o direito à vida, à existência.
Não sendo especialista nem em psicologia nem em organização escolar, julgo que aqui entra um dos papéis da escola e dos respectivos professores, que obviamente não estão lá meramente para transmitir matérias, mas para serem agentes educativos no sentido mais lato. A educação é uma batalha que se trava corpo a corpo, aluno a aluno, e na minha opinião muito do que pode constituir uma melhoria no ambiente nas universidades e politécnicos passa por aí, pela consciencialização de que os alunos devem ser tratados como indivíduos, com uma existência própria, o que parece lapalissiano, mas que pode nem sempre ocorrer.
É óbvio que é impossível ter uma relação de 24/7 de acompanhamento e monitorização de todos os alunos, o que seria aliás orwelliano. Mas programas institucionais de ajuda podem e devem ser implementados. Já há muitos anos que os novos alunos do Instituto Superior Técnico têm mentores e tutores, isto é, alunos de anos anteriores e professores, respectivamente, que precisamente acompanham esses “caloiros” na adaptação à vida universitária. O objectivo tem de ser sempre identificar e mitigar problemas, desmistificando o estigma da necessidade de receber apoio. E na vivência normal ter sempre em mente que os alunos são pessoas, que não são meros números nem estatísticas nem sequer uma massa anónima. Ao mesmo tempo não se pode baixar a fasquia da excelência, ou permitir que se instale uma certa cultura da fragilidade ou do laxismo, mas com exigência deve-se tentar dar a cada aluno a formação que ele merece, de forma equilibrada, para que atinja o seu potencial.
E com boa comunicação muito pode ser conseguido. Sem ser exaustivo, considerem-se alguns exemplos. Se dois professores pedirem um relatório, por coincidência, com o mesmo prazo de entrega, será possível os alunos terem a iniciativa (e terem o à-vontade) para solicitar um ajuste no prazo? É possível tomar acção de forma benévola e construtiva, mesmo quando algo corre mal? Se um aluno não compreendeu (ou não leu) uma regra de funcionamento da cadeira, pode o professor benevolamente explicar o que precisar de explicar, ou pelo menos referir pacientemente ao aluno a documentação que ele pode consultar? Por outro lado, se um aluno tiver uma má experiência com um professor, pode ser isso considerado pelo aluno como algo pontual, dentro daquilo que são as relações imperfeitas entre seres humanos? Ou então, se tal incidente não puder ser desvalorizado, pode-se reportar tal conduta nos locais próprios, em vez de generalizar e propalar a má experiência como se fosse representativa de toda uma instituição?
Em suma, a sociedade espera que as instituições de ensino superior formem futuros profissionais de excelência. A única forma comprovada de conseguir isso é mantendo elevados padrões de exigência. Sem esmagar os alunos, que são indivíduos que como qualquer ser humano têm o direito à existência.