Uma viagem pela Lisboa “secreta” das minorias religiosas

Ao longo de cinco meses, Maria Beatriz de Vilhena mergulhou na Lisboa quase invisível das minorias religiosas. Mesquitas, sinagogas, igrejas ortodoxas, anglicanas, evangélicas, templos budistas, hindus e umbanda estiveram sob a lente da fotógrafa. “Tinha uma grande vontade voyeurista de entrar em sítios onde nunca entrei. Eu sou de Lisboa e nunca tinha visto nada disto.”

©Maria Beatriz de Vilhena
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©Maria Beatriz de Vilhena

Maria Beatriz de Vilhena acredita em menos um deus do que todas as pessoas com quem se cruzou durante o desenvolvimento do seu projecto, Fractal, dedicado aos muitos credos e comunidades religiosas que povoam a Grande Lisboa. “Sou agnóstica”, conta ao P3 a fotógrafa e arquitecta lisboeta de 30 anos. “Parto da perspectiva de uma pessoa não crente que procura compreender a certeza que as outras pessoas sentem relativamente aos seus credos – que é algo que eu não consigo ter.”

Assim, Maria Beatriz de Vilhena dedicou cinco meses, entre 2021 e 2022, à visita de 23 igrejas e templos religiosos da capital, cidade onde “perto de 10% da população se identifica com religiões que não a da Igreja Católica”. Mesquitas, igrejas ortodoxas, anglicanas e evangélicas, templos budistas, hindus, umbanda e até uma sinagoga em pleno Hanukkah estiveram sob observação. “Comecei por fazer pesquisa sobre o tema e por desenhar num mapa os locais de culto que gostaria de visitar”, contou, aludindo ao trabalho desenvolvido no decorrer do workshop de fotografia ministrado por Mário Cruz, sob alçada da Narrativa, no qual participou. “Contactei cada um e nem todos aceitaram receber-me. Alguns disseram-me que podia visitar mas não recolher imagens.”

A confiança mútua foi-se estabelecendo à medida que as visitas de Maria Beatriz às diversas estruturas de culto se multiplicavam. “Em alguns lugares, criei boas ligações com as pessoas, que no final dos rituais me convidavam para partilhar uma refeição comunitária e conversar”, recorda. Na Igreja Evangélica Chinesa, descreve, “só uma pessoa falava inglês”, pensou "desde o início que seria muito difícil lá entrar”. Enganou-se. “Convidaram-me para subir ao palco e apresentar-me, em mandarim. Quando dei conta, estavam todos a apontar para mim e eu não percebia nada do que diziam.”

As experiências no templo hindu, no Intendente, “em algumas mesquitas” e num centro umbanda – religião brasileira que combina elementos de religiões africanas, indígenas e cristãs – foram as mais impactantes para si. “Aprendi muito”, diz, referindo-se à última. “Fui visitar num dia de ‘gira de crianças’. O ritual inclui um cerco feito com uma corda: quem está dentro do cerco incorpora uma entidade e quem está fora, a meio do ritual, pode intervir e colocar questões a essas entidades. Podem ser questões sobre antepassados que morreram, sobre impasses da vida. Nunca tinha visto nada do género.”

Num país com tradição católica apostólica romana, a presença de outras religiões está, muitas vezes, associada a comunidades imigrantes. “As religiões têm muitas diferenças entre elas, mas têm uma coisa em comum: o sentido de comunidade”, reflecte Beatriz. E é de sentido de comunidade e entreajuda que muitos recém-imigrados precisam e procuram aquando da sua chegada a Portugal. “Existe um templo hindu, na zona histórica de Lisboa, onde todos os crentes são oriundos da mesma zona da Índia”, revela. “Quando chegam, são acolhidos lá. De certo modo, facilita-lhes o começo de vida, mas acabam por entrar para uma sociedade fechada. Nalguns casos, é como se vivessem cá mas numa realidade paralela. Dentro dos seus núcleos restritos têm maior dificuldade em integrar-se na sociedade portuguesa.”

Nem todos os lugares são como esse templo hindu, ressalva Maria Beatriz. “Há templos mais abertos à sociedade, em geral, que são frequentados por pessoas de muitas nacionalidades e onde, muitas vezes, se fala português.” A maioria dos lugares de culto com essas características tem uma presença muito palpável na cidade – como a Mesquita Central de Lisboa ou a sinagoga Shaaré Tikvah. Também há excepções à regra, como a do templo budista que visitou, muito frequentado por portugueses. Maria Beatriz queria ir para além do óbvio. “Tinha uma grande vontade voyeurista de entrar em sítios onde nunca entrei, em Lisboa. Eu sou de Lisboa e nunca tinha visto nada disto na minha cidade.”

Assim, em lugares menos visíveis, encontrou “muitas estruturas informais e espontâneas”, espaços "quase secretos" como armazéns ou lojas arrendadas que são transformados pelas pessoas. Considera curiosa a janela que se abre após o primeiro relance sobre essa realidade pouco evidente. “Quando se começa a reparar na existência destes lugares, torna-se impossível parar de vê-los. Eu e os meus colegas, subitamente, encontrávamos igrejas e locais de culto em muitos lugares. Às vezes, mesmo à porta de casa, sem nunca antes termos reparado neles.”

O projecto Fractal, que se encontra em exposição até dia 4 de Junho no espaço da Narrativa, em Lisboa, foi assim baptizado por querer transmitir uma ideia de “horizontalidade da fé”. Ou seja, “da fé desligada do nome que cada igreja possa reclamar”. Todas as fés são, para Beatriz, na sua essência, uma “crença comum”. Aprendeu, ao longo do desenvolvimento do projecto, que a religião é agregadora, que potencia a formação de laços entre os indivíduos, e que a espiritualidade nem sempre está no topo das prioridades de quem frequenta um local de culto. A rotina, o sentimento de comunidade, a entreajuda têm, por vezes, um papel de maior relevância para os frequentadores.

Se algo mudou em si, após a realização o projecto? “Para as dúvidas que tinha e tenho não encontrei respostas”, confessa. “Mas não esperava encontrá-las. E acho que a maior parte das pessoas que eu conheci nos lugares de culto têm as mesmas dúvidas que eu, mas escolheram fazer parte de uma comunidade.” Não nega a existência da espiritualidade dos outros. “Ela existe, mas eu não a tenho.”

Tenda Umbanda Ogum Rompe Mato
Tenda Umbanda Ogum Rompe Mato ©Maria Beatriz de Vilhena
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume ©Maria Beatriz de Vilhena
Templo de Shiva
Templo de Shiva ©Maria Beatriz de Vilhena
Templo de Shiva
Templo de Shiva ©Maria Beatriz de Vilhena
Mesquita Baitul Mukarram
Mesquita Baitul Mukarram ©Maria Beatriz de Vilhena
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume ©Maria Beatriz de Vilhena
Igreja Evangélica Chinesa
Igreja Evangélica Chinesa ©Maria Beatriz de Vilhena
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume ©Maria Beatriz de Vilhena
Templo Radha Krishna
Templo Radha Krishna ©Maria Beatriz de Vilhena
Mesquita Baitul Mukarram
Mesquita Baitul Mukarram ©Maria Beatriz de Vilhena
Basílica de Santa Maria Maior (Sé)
Basílica de Santa Maria Maior (Sé) ©Maria Beatriz de Vilhena
Gurdwara Sikh Sangat Sahib
Gurdwara Sikh Sangat Sahib ©Maria Beatriz de Vilhena
Mesquita Central de Lisboa
Mesquita Central de Lisboa ©Maria Beatriz de Vilhena
Mesquita Central de Lisboa
Mesquita Central de Lisboa ©Maria Beatriz de Vilhena
Templo de Shiva
Templo de Shiva ©Maria Beatriz de Vilhena
Sinagoga Shaare Tikvah
Sinagoga Shaare Tikvah ©Maria Beatriz de Vilhena
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume
Catedral Ortodoxa de São Martinho de Dume ©Maria Beatriz de Vilhena
Mesquita Central de Lisboa
Mesquita Central de Lisboa ©Maria Beatriz de Vilhena
Mesquita Central de Lisboa
Mesquita Central de Lisboa ©Maria Beatriz de Vilhena
Basílica de Santa Maria Maior (Sé)
Basílica de Santa Maria Maior (Sé) ©Maria Beatriz de Vilhena
Mesquita Central de Lisboa
Mesquita Central de Lisboa ©Maria Beatriz de Vilhena