Esclerose Múltipla: como travar a doença e melhorar a qualidade de vida?

As causas são desconhecidas, há factores de risco genéticos e ambientais, o diagnóstico pode ser um desafio e quanto mais tardio, pior o prognóstico. Mas existem várias terapêuticas que permitem travar a doença, ainda que não seja, de momento, uma doença curável. O dia 30 de Maio assinala o Dia Mundial da Esclerose Múltipla.

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É uma doença desmielinizante crónica do Sistema Nervoso Central em que há um processo de inflamação e de degenerescência neuronal. A esclerose múltipla (EM) tem na sua génese uma disfunção do sistema imunológico sendo considerada uma doença auto-imune. As causas são desconhecidas embora existam factores de risco relevantes, genéticos e ambientais. “Nesse processo inflamatório e degenerativo, há uma alteração e posterior perda da mielina que é uma substância que envolve as fibras nervosas podendo originar lesões irreversíveis”, explica Maria José Sá, neurologista e presidente do Grupo de Estudos de Esclerose Múltipla (GEEM).

A EM atinge mais as mulheres e tem o início em faixas etárias jovens, em média, aos 30 anos, o que não significa que não existam casos diagnosticados mais tarde, por volta da sexta década de vida, por exemplo. “São formas tardias e mais raras de casos de pessoas que não tiveram sintomas anteriormente e só depois foram diagnosticadas”, afirma a também chefe de Serviço de Neurologia e responsável pela consulta de Esclerose Múltipla do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto. Alguns casos são diagnosticados em pessoas que apresentavam na história clínica sintomas prévios sugestivos de doença desmielinizante, como por exemplo, falta de força ou formigueiros recorrentes, mas que até então não tinham sido valorizados.

O desafio do diagnóstico precoce é constante, precisamente por esta questão da sintomatologia variada e que pode ser confundida no que respeita à causa. “Estamos a falar de sintomas inespecíficos que dependem do local onde se encontram as lesões: se se localizam na medula espinhal, ou em diferentes regiões do encéfalo, podendo em última análise afectar todas as funções do Sistema Nervoso Central”, explica Maria José Sá. Existem várias especialidades que podem referenciar estes doentes, por exemplo no caso de uma nevrite óptica numa pessoa jovem, os oftalmologistas desconfiam desta hipótese e sugerem muitas vezes a realização de uma ressonância magnética (RM) para detecção da EM. Também os ortopedistas têm um papel importante nesta referenciação uma vez que alguns doentes apresentam falta de força, atingindo sobretudo os membros inferiores.

O diagnóstico é realizado com base em critérios de consenso internacionalmente aceites. “Estes critérios são definidos por peritos que, ao longo de mais de 20 anos, se reúnem para identificar os parâmetros de diagnóstico, assentes sobretudo na história clínica e em exames complementares de diagnóstico, nomeadamente, a RM. Estes critérios de diagnóstico necessários para identificar a doença são periodicamente revistos”, sublinha.

Como tratar?

Perante a notícia de que se foi diagnosticado com EM, é preciso gerir o confronto e a reacção emocional que as pessoas possam ter. “A percepção é a de que sendo uma doença crónica podem surgir novos surtos, novos sintomas e incapacidade”, explica Maria José Sá. Quanto mais cedo a doença for detectada, melhor será tratada e prognóstico terá. “Há um grande receio por parte das pessoas com EM de terem défice motor e de virem a necessitar de uma cadeira de rodas e da ajuda de terceiros. É preciso apoiar o doente e explicar que nós somos uma equipa com o doente.” Na equipa multidisciplinar, participam ainda os colegas de outras especialidades e a enfermagem.

Perante uma primeira RM de diagnóstico, a regra é que o doente realize novo exame após seis meses do início da medicação, passando a haver posteriormente uma periodicidade anual, mas cada caso é avaliado em consulta e de forma individual. É também este exame que é mandatório no ajuste terapêutico ao longo da vida da pessoa com EM, já que pode evidenciar actividade inflamatória em curso. “O que queremos avaliar é se a doença está activa ou não. A EM pode estar activa por critérios clínicos (que incluem os surtos, a progressão de incapacidade, a avaliação cognitiva que pode demonstrar se há aumento de défices ainda que ligeiros) ou critérios imagiológicos que nos mostram onde estão as lesões e se surgem novas ou se as que já existiam se encontram aumentadas ou a captar contraste.

Depois do diagnóstico começa uma nova jornada para a pessoa com EM e a sua família. O tratamento inclui diversos parâmetros. Um dos tratamentos é feito em hospital de dia nas fases agudas do surto, com corticoides em altas doses. “Se não houver resposta aos corticóides, os doentes sabem que podem ter de fazer outras alternativas terapêuticas. Depois, temos os tratamentos dos sintomas: da depressão, da dor, das alterações esfincterianas, da espasticidade, entre outros, que não são específicos da doença, mas que melhoram muito a qualidade de vida dos doentes”, explica Maria José Sá. Em formas mais avançadas da doença, a fisioterapia e a reabilitação também são muito relevantes.

Por outro lado, refere a presidente do GEEM, os fármacos mais importantes e específicos para a EM são os que actuam directamente no sistema imunitário. São os chamados imunomoduladores e imunossupressores que são as terapêuticas que também se designam como modificadoras da história natural da doença e cujo objectivo passa por evitar surtos ou torná-los menos agressivos e/ou limitativos e evitar a progressão da incapacidade. “Não é curar, mas sim travar a doença”, sublinha. A inovação tem sido recorrente nesta área. “Temos medicamentos com vários mecanismos de acção. Se não houver uma boa resposta a um fármaco, está preconizado que podemos fazer uma ou mais mudanças farmacológicas.”

É possível ter uma vida normal

Existem dois grandes grupos de pessoas com EM. Um grupo que tem EM por surtos e um outro que tem uma doença mais progressiva, mais rara e em regra mais grave. “Esta última tem uma prevalência mais baixa, podendo nunca haver surtos ou surgirem muito raramente, e a progressão da incapacidade é inexorável. Os sintomas, ao serem inespecíficos, originam um diagnóstico mais tardio”, explica Maria José Sá. A avaliação de sintomas motores e/ou cognitivos é relevante para o tratamento e para a qualidade de vida.

“Doentes com carga lesional elevada e pessoas que têm défices motores logo à partida e com formas de doença que evoluem mais depressa [sobretudo nos homens], começam de imediato a fazer terapêuticas de indução para tentar parar o processo logo de imediato. Mesmo nesses casos e, em todos os outros, a indicação que damos é a de que devem ter uma vida, o mais normal possível”, explica a neurologista. Podem passear, viajar (seguindo algumas regras), ter uma alimentação normal, ter filhos, casar, ter uma profissão. A ideia de que uma mulher com EM não pode engravidar já está ultrapassada, garante Maria José Sá. “Se for esse o seu desejo, é possível realizar este projecto com o devido ajuste da medicação porque há medicamentos que não podem ser continuados durante a gravidez.” O planeamento e a monitorização constituem a chave para que esta fase decorra da melhor maneira.

A fadiga é um sintoma muito inespecífico, mas, segundo a presidente do GEEM é talvez o mais frequente, referido por quase 90% dos doentes. Nestes, como nos restantes doentes, a recomendação da prática de exercício físico é muito importante no sentido de ganharem uma maior resistência.

O que há a melhorar no futuro?

O GEEM é composto por um grupo de médicos e outros profissionais de saúde que pretende ter uma intervenção relevante na sociedade, trabalhar em conjunto com as associações de doentes, prosseguindo vários objectivos. Um deles é a melhoria do conhecimento científico sobre as doenças desmielinizantes e, em particular, a EM. E os outros, não menos importantes, passam por facilitar a troca de experiências com colegas de outros países que participam nas reuniões periódicas e trazem a sua experiência e por promover os estudos multicêntricos nacionais para conhecer melhor a realidade nacional, entre outros. Nesta missão que Maria José Sá tem de três anos enquanto presidente do GEEM, gostaria de ter uma intervenção ao nível de todo o país que ultrapassa a componente científica e envolve a melhoria dos cuidados.

“Será também fundamental rever as normas terapêuticas pois as que temos actualmente foram publicadas em 2015 pela Direcção Geral da Saúde e há a urgência de serem totalmente revistas.” Na opinião da neurologista, a missão do grupo passa por trabalhar com colegas e associações de doentes, mas também com entidades, como é o caso do Ministério da Saúde. “É importante melhorar o acesso das pessoas com EM a alguns medicamentos, por exemplo, aqueles que moram no interior ou em zonas onde existem unidades de saúde mais pequenas e que não têm a mesma possibilidade de administrar algumas terapêuticas.” Para optimizar os cuidados de saúde a estes doentes é absolutamente determinante criar um registo nacional dos doentes e uma rede de Centros de Referência de EM, sublinha.

O GEEM tem ainda como missão perceber como pode ser melhorada a participação em ensaios clínicos na EM que são cada vez mais exigentes, em termos de equipas, de profissionais envolvidos, de meios complementares de diagnóstico e de requisitos. “Nós não temos uma estrutura organizacional nos hospitais públicos que nos permita ter muita disponibilidade para esta questão, em termos de tempo. Se o país quer ter ensaios clínicos em fase III em vários centros – que são os mais importantes e os que levam ao licenciamento de fármacos – temos uma dificuldade imensa a nível logística e de gestão”, explica. Melhorar o acesso dos doentes aos ensaios clínicos e o reconhecimento dos profissionais envolvidos no sentido de terem tempo disponível para se dedicarem aos mesmos são metas que Maria José Sá gostaria de ver concretizadas, mas, reconhece, exigem recursos humanos e uma estrutura organizacional mais ágil.

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