Pressões sobre a formação de professores: o “regresso ao passado”?

Estamos, novamente, a atravessar um período especialmente crítico que nos leva a temer o regresso aos processos do passado, embora com novos contornos, de que é exemplo a subordinação da educação à esfera económica.

Na década de 80, a falta de professores provocada pela massificação escolar trouxe para a educação muitos indivíduos de outras áreas profissionais sem as habilitações pedagógicas e científicas necessárias para o exercício da ação docente. Programas sucessivos de remediação da situação, que se agravara, foram implementados em três fases: a profissionalização em exercício, a formação em serviço e a profissionalização em serviço. Não obstante, vários estudos desenvolvidos revelavam que esses programas não eram suficientes para introduzir as mudanças necessárias do ponto de vista concetual, curricular e pedagógico que permitissem colmatar as lacunas identificadas nos processos formativos desses professores e, em simultâneo, contrariar, efetivamente, a tendência da visão de desqualificação da profissão docente, que se havia instalado.

A pressão, induzida pela Comunidade Económica Europeia, para a modernização do país e a utilização da educação como garante de crescimento económico viria a contribuir, também, para o reforço de processos educativos mais curtos e de feição tecnológica e utilitarista, visando, especialmente, a inserção qualificada no mundo do trabalho. Os diferentes caminhos previstos para a formação de professores, a excessiva balcanização do conhecimento, a perspetiva da valorização de determinadas áreas do saber e numa lógica fragmentada, as fragilidades identificadas, em alguns casos, na componente pedagógica e a débil integração de práticas supervisionadas em contexto, contribuíram para dificultar a construção, efetiva, de um corpo docente com uma identidade específica que partilhasse princípios pedagógicos e científicos. A visão tecnocrática de educação amplamente difundida no discurso político-normativo, embora, por vezes, de forma implícita, condicionou o desenvolvimento da capacidade crítica, emancipatória e autonómica dos professores.

Estamos, agora, novamente, a atravessar um período especialmente crítico que nos leva a temer o regresso aos processos do passado, embora com novos contornos. A falta de professores, em Portugal e em muitos outros países da Europa, leva a que se equacionem medidas emergenciais para responder ao problema. Por outro lado, a União Europeia assume a educação como um instrumento central para o desenvolvimento económico e os professores como elementos centrais nesse processo. A urgência para resolver os desafios que se colocam à Europa poderá “justificar” determinadas medidas avulsas, já veiculadas, de certa forma, nas orientações produzidas por entidades supranacionais, e que legitimam a tomada de decisões para a formação de professores nos diferentes países.

As recomendações apresentadas, por exemplo, pelo Conselho Europeu, expressas na “Resolução do Conselho para o quadro estratégico para a cooperação europeia no domínio da educação e da formação rumo ao Espaço Europeu da Educação e mais além (2021-2030)”, publicada em 2021, levam-nos a recordar o “velho” discurso da necessidade de modernização dos sistemas educativos para ampliar a competitividade e fortalecer as economias, assumindo-se, naturalmente, a educação ao serviço da construção de um espaço europeu mais forte no panorama mundial, percebendo-se o risco de revisitar os caminhos erróneos do passado.

A hipervalorização de determinadas áreas do conhecimento pré-definidas a priori como as áreas STEAM, a centralidade da ligação da educação à economia e da sua exacerbada adequação às exigências do mundo do trabalho e, ainda, a emergência da construção de uma identidade europeia com a finalidade de tornar este espaço mais coeso e competitivo, poderá encaminhar, de novo, a formação de professores para abordagens tecnicistas mascaradas de inovadoras. A centralidade de determinadas áreas consideradas de excelência e a possibilidade de múltiplos caminhos de formação, incluindo a utilização de microcredenciais, na lógica de benchmarking, tão ao gosto das tendências do mercado competitivo educacional, poderá contribuir para um retrocesso significativo na formação de professores, na medida em que nos afastamos de preocupações centrais na área da educação como a ação educacional no plano social e comunitário.

Os fenómenos emergentes sociais e educacionais exigem professores com bases consistentes do ponto de vista científico e pedagógico na área das ciências sociais e humanas, nomeadamente no campo das ciências de educação e da didática, áreas nucleares na formação de profissionais especializados na área da educação. Para além das áreas científicas, exige-se elevada capacidade de autorreflexão crítica e identidade profissional consolidada que permita construir uma profissão com elevada responsabilidade social e que estabeleça, de algum modo, contra regulações na progressiva instrumentalização e subordinação da educação à esfera económica.

Exige-se que os professores continuem a contribuir para a construção de sociedades mais igualitárias, justas e democráticas com consciência ecológica e ecopolítica e que sejam capazes de promover o espírito crítico das gerações futuras para que enfrentem as descontinuidades e ruturas inerentes aos tempos contemporâneos em que o consumismo, a competição, o inovacionismo e o imediatismo parecem ter assumido lugar de destaque na educação e substituído funções centrais na formação dos indivíduos como a problematização e desenvolvimento da dimensão humana, questões centrais na construção do ser e estar no mundo contemporâneo, em permanente devir.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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