Prima Facie — à primeira vista

Se daqui em diante as provas são circunstanciais? São. Se daqui em diante é a palavra de um contra a palavra de outro? É. Se Tessa vai em frente e leva o agressor a tribunal? Leva. Se sairá vitoriosa? Não digo.

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Imagem da peça Prima Facie DR

À primeira vista, o meu cliente é inocente. Não há provas em contrário, apenas a dúvida.
Aconteceu ou não aconteceu? Na dúvida, a conclusão é simples, não aconteceu e por conseguinte e por consequência o meu cliente é inocente.
Mais um caso, mais uma vitória. Culpado? Pouco importa se a lei se faz para ganhar ou perder. Como um jogo. Como se estivéssemos a brincar.

Este é o preâmbulo de Prima Facie, monólogo de 100 minutos nas mãos de Jodie Comer a estrear-se em palco em Londres. Mas não estamos a brincar e Tessa não perde. Tessa é uma jovem advogada de sucesso, o tribunal o seu palco e o júri, juiz, o lesado e o acusado os actores na peça por si escrita dia após dia, noite após noite, processo atrás de processo, vitória após vitória.

Tessa escolheu a defesa do réu, um lado do campo em oposição ao outro, do lesado, da vítima. Mas para Tessa não há vítimas, ou, aliás, há vítimas, as presas de uma retórica legal cujo fim nunca é a presunção da culpa ou inocência, antes o garante dos direitos do réu aos olhos da lei.

E sim, para Tessa não há misericórdia nos casos de violação, um crime escondido com poucas marcas visíveis e onde o trauma da vítima é presa fácil para a jovem advogada. Mas se não há misericórdia, porque não consegue Tessa apagar da memória o depoimento daquela mulher de voz trémula?

Vítima de violação e com a inocência do réu à vista, de pouco importava a condenação conquanto o mundo soubesse da sua provação. Independentemente do trauma revisitado vezes sem conta no tribunal. Independentemente da violação vivida vezes sem conta, as questões, dúvidas e contradições, as horas sem fim e as humilhações sem fim para não dizer o atrevimento de vir a público apontar o dedo aos homens “de bem” deste mundo. Talvez, e no talvez há a esperança, talvez o mesmo não voltasse a acontecer a outra mulher, pelo menos às mãos deste homem.

Mas à primeira vista não basta, as provas são circunstanciais e Tessa sai vitoriosa uma vez mais. Tessa tem o mundo na mão e a vida pela frente e tudo corre de feição. Tudo até aquela noite quando, depois de uma noite de copos, acaba vítima de violação às mãos do suposto namorado. Nem conseguiu gritar. Não podia, a mão dele na sua boca.

Quando acordou, a dúvida. Quando acordou, a vergonha, a sujidade que não sai apesar de mais de meia hora no chuveiro. E depois, de repente e antes que ele voltasse a acordar, a fuga ainda de noite, a chuva torrencial, as lágrimas torrenciais, o táxi: “para a polícia, por favor”.

Na polícia, não havia uma mulher com quem falar, apenas um homem, um homem e uma câmara, “pode repetir?”, “tem mesmo a certeza?”. Só então percebe o seu erro, a meia hora no chuveiro, o choro contido, as provas perdidas e Tessa a perceber-se finalmente como vítima e em tudo distante de um jogo, o seu.

Se daqui em diante as provas são circunstanciais? São. Se daqui em diante é a palavra de um contra a palavra de outro? É. Se Tessa vai em frente e leva o agressor a tribunal? Leva. Se sairá vitoriosa? Não digo.

Mas digo que mais do que o propósito de vencer é o propósito da mudança da lei, lei essa cega e surda mas nem por isso muda quando uma mulher tem a coragem, mas também todo o medo, de apontar o dedo e dizer não. Dizer não ao mesmo patriarcado responsável por escrever as leis que, em caso de dúvida e à primeira vista, levarão à sua redenção. Como se fossem crianças a fugir ao castigo das mães e portanto vingam-se nas mães e de todas as mulheres. Vingam-se de todas as Evas do mundo.

Mas a culpa não é das mulheres, não é nem nunca foi e uma mulher não tem de se sentir culpada quando aponta o dedo a quem escreve as leis. Porque, à primeira vista, uma mulher que se sujeita a reviver vezes sem conta a violação, uma mulher que ainda está a ser violada por todos os presentes na sala de um tribunal, é e será sempre uma vítima, a vítima de um crime. Esta é a prova e a prova é factual.

Este é o propósito maior de Tessa, o fulcro, o objectivo, o golo, se quiserem simplificar. As estatísticas não mentem quando a maioria dos agressores são do sexo masculino e familiares directos ou próximos da vítima, tantas vezes residentes na mesma morada.

Igualmente, as estatísticas não mentem quando o número de condenados continua a ser manifestamente inferior ao número de acusações e, neste mundo, o mais provável é voltar a acontecer outra e outra vez. Porque à primeira vista uma mulher não se dirige à polícia porque quer, ninguém quer, ninguém quer reviver, só querem que isto acabe.

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