Temos de falar sobre o Afeganistão

Assinalam-se nove meses desde que os taliban tomaram o poder no Afeganistão. O conflito na Ucrânia tornou a situação ainda mais desesperada.

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Reuters/JORGE SILVA

Nos últimos meses, o Afeganistão saiu das notícias ofuscado pelo conflito na Ucrânia. Entre os dois países existem várias diferenças, sendo que uma se destaca: Zelensky, o combativo líder ucraniano, recusou-se abandonar o país após a invasão, mantém contactos diários com líderes mundiais e esforça-se para que o conflito não caia no esquecimento; no dia em que os taliban chegaram às portas de Cabul, o presidente afegão abandonou a capital para “evitar um banho de sangue”.

A população sentiu-se abandonada e, ainda hoje, não tem uma figura que lute por si junto da opinião pública mundial. A 15 de Maio assinalaram-se nove meses desde que os taliban tomaram o poder, o que faz com que este seja o momento oportuno para voltamos a falar no Afeganistão.

O Afeganistão é um país profundamente fragmentado. Os taliban estão envolvidos numa luta entre uma ala pragmática e outra ultraconservadora, as quais procuram influenciar o rumo da governação e o futuro do movimento. Em algumas partes do país, verificam-se conflitos entre grupos taliban relacionados com o cultivo de papoila, utilizada para produzir ópio, e as receitas dos laboratórios de drogas, já que o Afeganistão se está a tornar um centro de produção de metanfetaminas.

Acrescente-se a dificuldade dos taliban em se apresentarem como um governo viável: o grupo tem revelado enormes dificuldades em governar o país de 39 milhões de pessoas, com dependências crónicas, e sem maneira de colmatar a fuga de cérebros dos últimos anos. O governo não foi reconhecido por nenhum país, o que impede o Afeganistão de exercer os seus direitos e obrigações internacionais.

O Afeganistão vive uma catástrofe humanitária e uma crise económica severa. Após a chegada ao poder dos taliban, a ajuda financeira e técnica internacional desapareceu e foram impostas sanções ao país, nomeadamente o congelamento das reservas do Banco Central afegão. O desemprego aumentou, pois muitos afegãos trabalhavam para as forças estrangeiras, e 94% da população vive na pobreza extrema, o que foi agravado pela pior seca das últimas três décadas e pela pandemia.

O conflito na Ucrânia tornou a situação ainda mais desesperada. O Afeganistão sente de forma particularmente aguda a escassez de cereais (e óleos vegetais), o aumento dos preços dos alimentos e do custo de transporte. Apesar de importar cereais do Cazaquistão, o Afeganistão sentirá os efeitos colaterais do bloqueio naval a que a Ucrânia está sujeita e que a impede de escoar a sua produção.

A piorar o cenário, a 13 de Maio a ONU admitiu que terá de reduzir o número de afegãos que ajuda de 38% para 8%, por falta de fundos, uma medida que será trágica.

Verificou-se um retrocesso dos direitos humanos, sobretudo no caso das mulheres. A relativa melhoria da condição feminina foi uma das conquistas após 2001. A educação das mulheres é um dos temas fracturantes entre as várias facções taliban. Contrariando as promessas iniciais, verificou-se uma escalada progressiva das restrições aos direitos daquelas. As escolas secundárias estão encerradas há cerca de 250 dias, privando muitas jovens do seu direito à educação.

De acordo com os taliban, é necessário criarem-se as condições no quadro da lei islâmica para que as meninas possam voltar à escola em segurança. As escolas primárias estão abertas às meninas na maioria do Afeganistão, assim como algumas universidades, mas com estrita segregação dos géneros. No mundo laboral, as mulheres apenas estão autorizadas a exercer funções no sector da saúde e da educação, já que não parece ser possível prescindir dos seus serviços.

Em Dezembro, as mulheres foram proibidas de fazer viagens longas sem um acompanhante masculino da família. A 7 de Maio, foi imposto o regresso da burqa: a mulher deve cobrir o rosto sempre que sair à rua ou o seu parente masculino mais próximo pagará tal incumprimento com uma pena de prisão ou perdendo o emprego, caso seja funcionário público. Enquanto o mundo olha para a Ucrânia, os taliban parecem aproveitar para fazer regressar uma das práticas mais regressivas da sua governação anterior, fruto de uma evidente perversão ideológica.

Outra acção levada a cabo pelos taliban foi a abolição da Comissão de Direitos Humanos, local onde a população se podia dirigir para pedir ajuda.

A instabilidade e a violência contra civis, mulheres, minorias étnicas e religiosas, activistas e imprensa aumentou em todo o país. O grupo Estado Islâmico Khorasan (ISK) continua activo, contando com antigos taliban. O ISK diminuiu a sua campanha no início deste ano, mas espalhou-se por todo o país, onde continua a atacar soft targets, patrulhas taliban e minorias xiitas e sufis. O grupo esforça-se por desacreditar a alegação taliban de que controla e mantém a segurança em todo o país. Na declaração de Doha de 2020, assinada entre taliban e os EUA, os primeiros tinham-se comprometido a não deixar que o Afeganistão se tornasse uma plataforma para grupos que ameaçassem a segurança e os interesses dos outros países. Porém, já este mês, o ISK atacou o Tajiquistão e o Uzbequistão a partir de território afegão.

Para a expansão territorial do ISK contribuiu a necessidade dos taliban concentrarem forças a norte para combater a National Resistance Force (NRF), grupo que tem a sua base no vale de Panjshir e inclui muitos antigos militares afegãos. Estes fazem oposição aos taliban desde Agosto de 2021, mas foi entre 5 e 8 de Maio que aconteceu a sua operação militar mais significativa, a qual resultou na morte de 30 taliban e mais de 50 feridos. Os taliban foram obrigados a retirarem-se, tendo regressado com reforços, os quais maltrataram e mataram muitos civis, acusados de colaborarem com os insurgentes. Esta força de resistência promete continuar a ofensiva, mas sem linhas de abastecimento externas, terá dificuldades. A preocupação dos taliban é que o NRF ganhe apoiantes e se torne uma força dispersa por todo o país.

Considerando estas divisões, existe o receio que ora a recusa dos taliban em negociar com adversários políticos, ora o aumento da competição entre grupos violentos, fomente uma nova guerra civil no país.

No seguimento da guerra na Ucrânia e do revitalizar da ideia de esferas de influências, verifica-se uma aproximação do Afeganistão à China. Por um lado, Pequim não tem as mesmas exigências dos países ocidentais no que se refere aos direitos humanos e princípios democráticos. Por outro lado, a China tem interesses económicos e securitários: Pequim precisa de estabilidade regional para proteger os seus investimentos, nomeadamente o projecto de infra-estruturas no Paquistão que lhe dará acesso ao mar Arábico.

Deste modo, os dois países têm construído relações funcionais e cordiais. A China poderá estar interessada em incluir o Afeganistão no seu programa de infra-estruturas à escala global (Road and Belt Initiative), o que seria mais fácil se os taliban fossem reconhecidos como governo legítimo do país. Ainda assim, diplomatas taliban receberam acreditação na China, Paquistão, Turquemenistão e, em Fevereiro, na Rússia. Tal é indicação de um crescente envolvimento político com o regime dos taliban em detrimento do bem-estar do próprio povo afegão.

Como a história demonstrou, o Afeganistão não é um território onde forças externas consigam impor ordem e estabilidade – daí ser conhecido por cemitério de impérios. A questão é se a China, através de incentivos económicos que aliviem alguns dos graves problemas do país e sem contrapartidas anexadas, conseguirá operar ali alguma mudança a curto ou médio prazo.

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