Há precariedade nos semáforos: a arte da sobrevivência

Ninguém sabe quem e quantos são e como vivem os artistas de rua. Sabemos apenas o que vemos: são artistas da sobrevivência à mercê da boa vontade dos que apaticamente enfileirados assistem ao espectáculo da precariedade da cultura em Portugal, ao ritmo luminoso de um semáforo.

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Adriano Miranda

São 8h30. Num semáforo perto do Centro Comercial Colombo, em Lisboa, um artista de rua prepara-se para mais um dia de trabalho. Vestido a rigor, espera que o semáforo feche para subir a uma escada onde, em equilíbrio, faz malabarismo em frente a um público automobilizado e involuntário e, portanto, difícil. É um número perigoso a vários níveis. Numa sincronia perfeita, a sua arte prolonga-se ao malabarismo de saber quando o semáforo vai abrir e o tempo necessário a, sem ser atropelado, rapidamente correr, por entre alguns carros e, com sorte, receber qualquer coisa em troca do entretenimento que voluntariamente ofereceu. Tudo é mentalmente cronometrado ao segundo, mas, como disse, é um público difícil. Porque raio há-de pagar por algo que não pediu e que, de qualquer das formas, pode usufruir gratuitamente? E para mais está rabugento por causa do trânsito e atrasado para o trabalho. Cada um com os seus problemas. Só a empatia ou mesmo a pena movem a generosidade. Mesmo esses sentimentos são geralmente invadidos pela auto-comiseração: “Se ao menos tivesse moedas…”

É hora de almoço. O artista lá continua, no calor abrasador do sol do meio-dia, transpirando em bica nas suas pesadas vestes de espectáculo, em loopings contínuos de actuações. Pergunto-me se terá já dinheiro para almoçar. Talvez não, mas agora pelo menos tem companhia. Num semáforo oposto, outro artista de rua faz o seu número que, por acaso (ou não), é também de malabarismo. Mas há de tudo. A cena repete-se por toda a cidade. Há dias e há semáforos em que temos a oportunidade de ver cuspidores de fogo, músicos, marionetistas, entre outros números cénicos e circenses. Certa vez parei num semáforo em que era o único carro. Sentado na berma do passeio estava um violinista que, sem se levantar e com ar desolado, me disse “Tem a sorte de ter um concerto só para si”, e depois começou a tocar Nocturne de Chopin. Dei-lhe 20 cêntimos. Era o que tinha… São artistas predominantemente jovens e talentosos, por vezes virtuosos até, como era o caso do violinista que relatei. Mas mesmo aqueles que colocam a máscara do sorriso, não conseguem esconder o desânimo. Mais do que o número que apresentam, o virtuosismo da sua arte é o da sobrevivência.

Muitos deles foram empurrados para os semáforos pela pandemia. Porém, a cultura em Portugal sofre de um outro vírus: o da precariedade. Os artistas de rua e, em particular, os que recorrem ao semáforo como sua sala de espectáculos improvisada, são só o expoente dessa precariedade. Para além de tardios, os apoios governamentais à cultura durante a pandemia ficaram marcados por queixas do sector sobre os valores e os apertados prazos de candidatura, sendo que os artistas de rua em específico ficaram mesmo de fora desses apoios. Num estudo realizado em 2018 para a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), a precariedade era já muito claramente um traço do perfil dos autores em Portugal. Nesse trabalho, era alertada a necessidade urgente de um “estatuto do artista” que conferisse protecção social e laboral a um sector marcadamente instável e precário.

A criação de uma lei que reconhecesse e respondesse às vulnerabilidades associadas a esse estatuto era já, de resto, reivindicada há vários anos pelos profissionais ligados ao sector da cultura. Numa tentativa de salvar a imagem, a criação do Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura (Decreto-Lei n.º 105/2021) foi a grande bandeira da pasta da cultura do anterior Governo. Mais uma vez, os artistas de rua ficaram excluídos deste estatuto. Ninguém sabe quem e quantos são e como vivem. Sabemos apenas o que vemos: são artistas da sobrevivência à mercê da boa vontade dos que apaticamente enfileirados assistem ao espectáculo da precariedade da cultura em Portugal, ao ritmo luminoso de um semáforo.

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