Navegação à vista

Navegação à vista? No BCE, infelizmente, nem isso, pois, para além de completamente “desnorteada”, a “mulher do leme” não sabe sequer qual o destino da nossa viagem.

De surpresa em surpresa, Christine Lagarde lá tem andado a dar a cara pela política monetária do Banco Central Europeu. Lembremo-nos que há dez anos, o seu antecessor violou uma das regras sagradas da independência de um Banco Central – a monetização da dívida pública – ao iniciar a compra da dívida dos Estados que não estavam a conseguir financiar-se a juros comportáveis. Sempre que isso aconteceu na história da humanidade, o efeito foi, invariavelmente, a inflação.

Mas a nossa inflação não começou há dez anos. Aliás, os preços comportaram-se muito bem até sensivelmente o Verão do ano passado. Só nessa altura é que começaram a dar sinais de que alguma coisa não estava bem. Sim, inteiramente verdade, pois o BCE não monetizou a dívida pública de todos os Estados, e nem sequer a totalidade da dívida pública de alguns Estados. Pelo que estas compras de títulos que injectaram dinheiro na economia europeia conseguiram ir sendo acomodadas.

PÚBLICO -
Aumentar

Pelo gráfico, até podemos ver que, entre Janeiro e Setembro de 2019, o BCE inverteu a política que tinha vindo a seguir, já vendeu mais dívida do que comprou. No entanto, em Outubro de 2019, a situação retoma a tendência anterior, com mais compra de títulos e a consequente injecção de dinheiro na Zona Euro.

Infelizmente, o confinamento da Europa e do resto do Mundo levou a quebras acentuadas na actividade, e como o dinheiro não parava de crescer, começava a sobrar relativamente ao PIB.

Se, até 2019, a proporção de dinheiro e preços do PIB se manteve, em 2020 vemos um salto enorme, chegando a ultrapassar 18 pontos percentuais. Foi criado um excedente de dinheiro que, se não viesse a ser compensado por um crescimento da actividade ou não viesse a ser retirado da economia, teria de reflectir-se em inflação.

Sim, em 2020! Quando não havia guerra nenhuma!

E este excedente começou a formar-se no final de 2019 com a retoma da compra de activos por parte do BCE.

PÚBLICO -
Aumentar

Portanto, estas linhas azul e vermelha vão voltar a encontrar-se; ou porque a quantidade de moeda relativamente ao PIB vai diminuir, ou porque os preços vão crescer.

Claro que se esperava que as economias pudessem vir a recuperar após a pandemia de forma a absorver uma parte deste excedente. Mas eis que surge uma guerra que vem trocar as voltas a estas boas intenções. Se havia dúvidas quanto à capacidade de o PIB poder vir a compensar este excesso de liquidez, elas acabaram. Isso não vai acontecer.

Então o que nos resta para evitar que os preços dispararem? Reduzir a quantidade de dinheiro. O que só é possível com um aumento das taxas de juro. É isso que tem vindo a acontecer no nosso grande parceiro, os Estados Unidos. A diferença entre as taxas de juro entre a Zona Euro e os Estados Unidos tem sido habitual nos últimos anos.

PÚBLICO -
Aumentar

No entanto, o valor do euro tem-se conseguido aguentar, pois a Balança da Pagamentos tem apresentado excedentes na Zona Euro e défices nos EUA. Mas agora, com uma tão grande diferença nas taxas de juro, o dólar tem vindo a tornar-se muito mais apetecível para aplicar capitais. A consequência é uma depreciação do euro face ao dólar.

PÚBLICO -
Aumentar

E então? Isso é algum problema?

Numa altura de alta dos preços das commodities, estando estas principalmente cotadas em dólares, sim, é um problema. Se o dólar fica mais caro, as commodities também ficam mais caras. O preço dos produtos energéticos tem disparado em dólares, e isso vai ser ainda multiplicado pela perda de valor do euro. O mesmo acontecendo com muitas outras matérias-primas.

No final de 2021, Christine Lagarde, a presidente do Banco Central Europeu, veio afirmar que “estamos num universo diferente dos Estado Unidos e do Reino Unido”, referindo-se ao fim dos estímulos da política monetária destes dois países; mas que o “BCE não irá hesitar quando chegar o momento de subir as taxas de juro.”

Um mês depois, em Janeiro deste ano, reforçou o compromisso da estabilidade de preços, afirmando que o pico da inflação tinha ficado em Dezembro; mas logo a seguir, em Fevereiro, mostrou-se surpreendida com a inflação, afirmando que deverá manter-se alta durante mais tempo do que o previsto; apesar disso, nessa mesma altura, continuava a afirmar que os juros não iriam subir.

Em Março, nova tomada de posição, com a referência à retirada de estímulos à economia e subida de juros: afinal, os estímulos monetários têm de acabar e os juros têm de subir “até ao fim do ano”. Mas, neste mês de Maio, admitiu que a compra de dívida por parte do BCE irá continuar durante mais dois ou três meses. Há dias, referiu que a subida das taxas de juro pode acontecer já em Julho.

Quando viajamos em piloto automático, qualquer um serve para estar no comendo. É nos momentos difíceis que um líder aparece. Um líder tem uma atitude pró-activa na resolução e na mitigação dos problemas. Um líder não pode denunciar uma reacção de surpresa e ficar impávido e sereno à espera de um milagre. Porque esses acabaram há mais de dois mil anos.

Navegação à vista? Infelizmente, nem isso, pois, para além de completamente “desnorteada”, a “mulher do leme” não sabe sequer qual o destino da nossa viagem.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários