A festa acabou

Esta realidade de surpresa e admiração, comum a muitos amigos e conhecidos da minha geração, não corresponde a qualquer promessa. Nem a minha elevada educação se adapta ao mercado de trabalho nem a minha experiência merece o que o panorama profissional das artes em Portugal tem para oferecer.

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Os artigos sobre a precariedade insustentável do futuro dos jovens portugueses populam com alguma regularidade as páginas de jornais nacionais, como é o caso do PÚBLICO, salários baixos em proporção ao nível académico, independência financeira abaixo da média europeia, crise habitacional e desemprego de jovens são alguns dos problemas apontados. Em parte, o meu caso pessoal revê-se nessas manchetes: o que está para vir como recém-mestre numa universidade internacional de prestígio a trabalhar em Lisboa? A resposta é incerta… E esta sensação não desvanece mesmo depois de assinar o meu primeiro contrato de trabalho. As pessoas perguntam-me: Então o que estudou? Respondo: Curadoria. Os que conhecem o ofício acrescentam: Ai é? Onde? Respondo: Na Goldsmiths University of London, tenho um mestrado em Fine Arts e as minhas propinas eram mais de dez mil euros por mês. Este inquérito acaba sempre com um: “Uau! Que bem!” Esta realidade de surpresa e admiração, comum a muitos amigos e conhecidos da minha geração, não corresponde a qualquer promessa. Nem a minha elevada educação se adapta ao mercado de trabalho nem a minha experiência merece o que o panorama profissional das artes em Portugal tem para oferecer.

A vida das artes nos anos 80 e 90 respirava entusiasmo, curiosidade e abertura: a festa imperava e oportunidades como convites, aquisições e cargos de valor surgiam com a naturalidade do seu tempo e sobretudo com mais dinheiro. Quando me refiro a festa, digo-o num sentido ideológico, simbólico e quase metafórico, representativo do espírito e talvez da atitude do que foram os anos 80 e 90. Um lugar no tempo onde havia mais oportunidades de trabalho, perspectivas de criar família e comprar uma casa sendo-se artista, escritora, curadora, música, bailarina e actriz, mais que tudo ambições que se poderiam tornar verdadeiramente reais. Agora, esperar que a ciclicidade da história nos leve de novo a esse tempo passado não será bem possível porque, na verdade, e com muita pena minha, a festa acabou e não haverá afterparty. Quando “acabasse” a pandemia, havia a especulação conversada do retorno dos loucos anos vinte, não é estranho? Esperar que uma coisa que aconteceu há cem anos se volte repetir. Em vez de procurar o futuro, procuramos o passado!

Onde estudei, há uma aura de constante homenagem ao mítico professor e teórico Mark Fisher, que desenvolveu a partir do exemplo da cultura popular propostas como o Realismo Capitalista. O tempo em que vivemos encaminha-nos, como geração, para um futuro não existente, teorizou Fisher. Segundo essa ideologia o que nos espera, desde a entrada no século XXI, vai sendo lentamente apagado. Esta visão sobre o tempo de agora, que não progrediu ou encontrou qualquer sentido de pertença cultural, faz de nós uns zombies errantes no tempo, achatado pelo peso da história. Este cepticismo do forte anti-futuro é, sem mais nem menos, uma crise de meia-idade pós-contemporânea e que traz para quem nunca viveu se não o “futuro sem futuro”, condenados a empurrar o futuro interminavelmente montanha acima. Fisher ilustra este pensamento através da história da música, explicando que qualquer música de hoje, ouvida 20 décadas no passado não teria qualquer impacto! Ou seja, a festa de hoje é no fundo uma reunião de mortos-vivos a dançar ao som de hits nostálgicos com mais uns bpms, visitar exposições recicladas e ver reencenações de teatros.

Não aponto estes erros para chamar a atenção ou mesmo para reparar as falhas existentes do sistema artístico que por sua vez engloba o político, o económico, o social, o educacional… É apenas um registo desta realidade confusa de se trabalhar para o bem que é mais poético quando já não há mais tempo para o fazer. A resolução para este problema não existe como provou a morte por suicídio de Fisher em 2017. Este professor talvez não conhecesse a expressão hiper-saturada da saudade, mas tenho a certeza que lhe daria toda uma nova tese da inerente melancolia e decadência portuguesa que está, não há vinte anos ou há cem parada no tempo, mas talvez até desde a batalha de Alcácer-Quibir.

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